Cultura

Artista plástico chinês Cai Guo-Qiang expõe no Brasil obras feitas com camponeses de seu país

“Da Vincis do povo” será apresentada nos CCBBs de Brasília (fevereiro), São Paulo (abril) e Rio (julho)

Fora da China há 20 anos, o artista posa em seu ateliê, em Manhattan
Foto: Divulgação / The Museum of Contemporary Art of Los Angeles
Fora da China há 20 anos, o artista posa em seu ateliê, em Manhattan Foto: Divulgação / The Museum of Contemporary Art of Los Angeles

NOVA YORK - Cai Guo-Qiang é um ótimo papo. O diretor de efeitos visuais e especiais das cerimônias de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008, famoso por seus experimentos com explosivos e pólvora em instalações e performances, fala pelos cotovelos. Em seu enorme estúdio no East Village, o senhor energético de 55 anos trata ao mesmo tempo de trabalho com a legião de assistentes, dá pitacos na vida escolar da filha, apresenta orgulhoso a mulher ao repórter e só sossega ao revelar, sorriso aberto, a enorme satisfação de ter sua primeira mostra individual no Brasil.

“Da Vincis do povo”, reunião de invenções desenvolvidas em parceria com agricultores e trabalhadores da China Profunda, será apresentada nos CCBBs de Brasília (fevereiro), São Paulo (abril) e Rio (julho), com a presença do vencedor do Leão de Ouro da Bienal de Veneza em 1999 e um dos cinco ganhadores, em 2012, do prestigioso Praemium Imperiale e da Medalha das Artes do Departamento de Estado dos EUA. Além de instalações como “Fairy tale”, com dezenas de aviões, helicópteros e discos voadores suspensos, e o tanque de água gelada em que uma flotilha de submarinos simula uma navegação por um mar glacial, o público brasileiro poderá conferir uma série de telas criadas a partir da explosão da pólvora, desenvolvidas especialmente para a exposição.

Depois de duas décadas fora da China, vivendo no Japão e nos EUA, Cai passou uma longa temporada em Pequim logo antes dos Jogos Olímpicos. Duramente criticado por seu compatriota Ai Weiwei por ter elaborado, ao lado do cineasta Zhang Yimou, uma cerimônia de abertura definida por Weiwei como “um amontoado infeliz de imagens hipócritas, verdadeira enciclopédia de dependência espiritual”, ele não se avexa em tratar do caráter eminentemente político de seu “Da Vincis do povo”.

— É um trabalho que trata da ânsia de liberdade dos chineses e não é mirado no Estado, mas no indivíduo. Quis dar a voz, modestamente, ao indivíduo chinês — conta o artista, cujo nome pronuncia-se “Tsai”, em entrevista ao GLOBO.

De onde surgiu a ideia de encontrar Leonardos Da Vinci anônimos espalhados pelo interior da China?

A partir de 2006 comecei a colecionar objetos criados por artesãos na China profunda. A estética do artesanato me encantava, e iniciei uma modesta coleção particular.

O que mais o impressionou nessas obras ?

No início, o uso de materiais humildes para um efeito tão interessante. Aí fui me aproximando dos artesãos, conhecendo-os melhor, e percebi uma constante: um desejo de definirem suas circunstâncias por meio daquelas invenções. No fundo, o que mostravam era um alargar de horizontes, um desejo de ser livres. Aquele conjunto de esperanças da população ordinária de meu país, tão bem articulado em criações singulares, me tocou profundamente.

E quando o senhor descobriu que era possível apresentar esta coleção particular para o grande público?

Não sabia exatamente o que fazer com aquilo, eram apenas objetos. Em 2010, fui convidado para inaugurar o Museu de Arte Rockbund, em Xangai, com a exposição que eu quisesse. Na mesma época, aconteceria a Exposição Mundial na cidade. Estas mostras historicamente tiveram um caráter científico, de apresentar as grandes invenções de cada país, o que é mais novo, mais rápido, melhor. Ora, pensei, serei agora um curador-artista, vou trabalhar com os meus objetos tão queridos. Então pensei que, ao contrário das Exposições Mundiais, não vou tratar de invenções feitas por grandes empresas ou nações. Vou dar espaço para o indivíduo. O tema da Expo Xangai era “por uma vida melhor, por uma cidade melhor”. Ora, e as contribuições dos camponeses, da China rural? Era isso que eu queria destacar.

A imagem do gigante chinês é a do operário que dá duro nas grandes cidades...

E esquecem que o campo foi crucial para a modernização chinesa. Foi a China rural, hoje com cerca de 300 milhões de camponeses, que ofereceu a mão de obra barata para a construção de nossas estradas e ferrovias, sem falar da base da nossa indústria. A exposição só existe se levarmos em conta o contexto social chinês. Ela mostra, por meio de criações muito livres, o desejo de um sistema mais democrático, sem excluir a justiça social. Em Xangai, resolvi incluir alguns slogans que casavam bem com as obras. Em um, eu dizia: “nunca aprenda a pousar”; em outro: “de que importa se você é capaz de voar?”. A ideia era contrapô-los ao deslanche econômico da China, trazer o sonho individual para o plano do país-potência. Com o crescimento econômico recente do Brasil, imagino que esta seja uma temática próxima do público de lá.

O senhor fez uma oficina em Recife e trabalhou com gente do povo. Em que aspectos os brasileiros são diferentes dos chineses?

Não são tão diferentes assim. Parti do princípio de que o homem comum tem prazer em criar objetos com as mãos. Somos todos inventores, basta termos a oportunidade. Minha esperança é que este trabalho ajude os brasileiros a se conectarem com as aspirações dos camponeses chineses e a compreender o esforço de milhares de pessoas para concretizarem seus sonhos. Os brasileiros são muito criativos. Muita gente não sabe aqui nos EUA, mas o primeiro voo de avião foi realizado por Santos Dumont. O Brasil também é um país continental, com um céu amplo, belíssimo. Criei o workshop “Crianças Da Vinci”, em que meninos e meninas de Brasília, São Paulo e Rio serão convidados a apresentar suas invenções como parte da exposição. Tudo o que eles produzirem entrará automaticamente no catálogo da exposição.

Os Da Vinci chineses compreenderam o impacto social e político da exposição?

Com certeza. Em “Da Vincis do povo" eles são a personificação do desejo de liberdade individual na população chinesa. Quando os convidei para a abertura da exposição em Xangai eles entenderam que tinham um meio para tratar, através da arte, da plataforma social dos camponeses chineses. Um deles, que criou um robô que deverá ser um sucesso no Brasil, irá às três capitais brasileiras com sua família.

O senhor também criou peças especialmente para as exposições brasileiras...

Sim, são telas grandes, uma delas inspirada nos fogos usados nos desfiles das escolas de samba do Rio. Eu imaginei algumas das invenções dos Da Vinci chineses desfilando até a Apoteose. Mas, além das telas, em São Paulo, pela primeira vez, algumas das instalações serão posicionadas na rua, do lado de fora do CCBB. No Rio, os helicópteros e aviões estarão posicionados de tal maneira que parecerá ao espectador uma espécie de invasão, como se eles estivessem vindo das ruas do centro histórico.

Sua família, originalmente, é de camponeses, não? Quando percebeu que era um artista, não um agricultor?

Sim, todos vieram do campo. Lembro de ver de longe os muros da cidade grande, imaginando o que haveria do outro lado, cercado por todos os lados pelas enormes plantações de arroz. Meu pai era fã da caligrafia tradicional chinesa, e ali encontrei meu canal para as artes. Soube logo que não seria um trabalhador clássico. Percebia que era um artista não apenas quando sentia satisfação ao pintar uma nova tela, mas ao me ver exultante ao fazer um buquê de flores. E no comunismo, esse tipo de comportamento é visto como perigosamente burguês.

O futuro da China se parecerá com os EUA de hoje?

Não há outro caminho. Não é só a China que precisa ir mais nessa direção. Não somos mais o país pobre dos anos 1960. Em alguns anos nossa economia será do tamanho da americana. O mundo precisa que esta potência seja mais transparente. O povo chinês precisa de um governo mais transparente.

O senhor teria algum conselho para os organizadores das Olimpíadas do Rio?

Se os cariocas quiserem qualquer conselho, estou pronto para conversar com eles. Mas o Brasil tem muita gente talentosa, tenho certeza de que eles vão oferecer ao mundo uma grande surpresa. O maior desafio é ter apenas uma hora para mostrar seu país, sua cultura. No meu caso, fiquei feliz com algumas partes em Pequim, mas outras foram uma pena. Fiquei feliz por ter podido mostrar com todas as cores a história e a filosofia da China, usando tecnologia contemporânea para lidar com uma estética milenar, um espírito antigo, uma cultura anciã.

Uma Olimpíada modifica uma cidade?

Ela tem esse potencial. Pequim passou finalmente, em 2008, a fazer parte do mundo. A mudança é irreversível e importantíssima.