Esther Solano

[email protected]

Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Unifesp

Opinião

Não permitamos que Bolsonaro se reconstrua sobre os mortos

Sabemos, muito bem, que em momentos de crises profundas, a construção da verdade é um jogo complicado

Presidente da República, Jair Bolsonaro durante Cerimônia de Lançamento do Plano Safra 2020/2021. Foto: Carolina Antunes/PR
Apoie Siga-nos no

O Brasil parece um carro desgovernado, em alta velocidade, batendo recordes internacionais de cadáveres, atropelando ossos humanos com ferocidade. Bom, quem dera estivesse mesmo desgovernado. Infelizmente, o piloto governa, sim, e governa a partir da morte e para a morte. Se alguém não havia entendido ainda a definição do conceito de necropolítica, Bolsonaro se empenha continuamente, no seu macabro didatismo, em tornar óbvio o sentido do termo. A gente deve ter o pior carma do universo para atravessar uma pandemia com um governo fascista. Nem no mais sinistro dos capítulos da série Black Mirror o roteirista teria pensado numa situação tão pavorosa.

Qualquer desavisado estará pensando agora mesmo: “O número de mortos vai subir, e chegará um momento em que a culpa de Bolsonaro pelo massacre ficará tão evidente que os brasileiros, mesmo muitos que votaram nele, desejarão sua saída do poder”. Ah, se a lógica política fosse tão linear, tão bonitinha, se ela seguisse caminhos simples, mas não, são tortuosos, labirínticos. Infelizmente, não é um dado predefinido que Bolsonaro será responsabilizado pelos mortos.

 

Vejamos. Durante o mês de maio, em parceria com Camila Rocha, realizei uma pesquisa financiada pela Fundação Friedrich-Ebert, que consistia em entrevistas de votantes de Bolsonaro das classes C e D. Entre outras coisas, queríamos entender como eles estavam percebendo a crise do coronavírus. Dividimos nossos entrevistados em três categorias: eleitores fiéis, críticos e arrependidos. Para nosso desconforto, descobrimos que há duas potentes narrativas do bolsonarismo diante da covid-19 que estão avançando em legitimidade até entre os críticos e arrependidos: 1. A dicotomia insolúvel vida versus economia. Nesse sentido, a quarentena seria um privilégio e não um direito, e os pobres não teriam condições de ficar em casa cuidando da saúde. 2. A culpa seria compartilhada entre governadores e prefeitos pelo caos na gestão da pandemia e o aumento do número de mortos. Ou seja, os números trágicos da pandemia não seriam só culpa de Bolsonaro, mas também dos gestores de estados e municípios. Tudo isso me preocupa, muito.

Caso o campo progressista não consiga desfazer ou se contrapor a essas duas narrativas, Bolsonaro pode, muito bem, reverter sua queda de popularidade à medida que a pandemia avançar, ou seja, poderia chegar a, paradoxalmente, reconstruir parte de sua popularidade sobre os cadáveres dos brasileiros. Meu medo não é especulativo, vejo essa possibilidade nas entrevistas. Nossa pesquisa foi feita em São Paulo. Quase a totalidade dos entrevistados, até os mais frustrados com Bolsonaro, diz que o governador João Doria tem grande ou a maior parte de culpa pela terrível gestão da pandemia no estado, pelo fechamento meia-boca. Doria pretenderia fazer politicagem com a doença e lucrar com o confronto com Bolsonaro para tirar vantagem em uma possível candidatura presidencial em 2022.

É verdade também que grande parte dos entrevistados considera o presidente irresponsável, principalmente por negar a importância da pandemia e convocar manifestações, mas minha preocupação é que Bolsonaro, com sua tática contínua de criminalização de seus adversários, consiga progressivamente jogar as vítimas da pandemia nas costas de outros. A gente sabe que o número de mortos vai aumentar. A gente sabe que a crise econômica, consequência da crise sanitária, será dura e duradoura. Quem diz que Bolsonaro não vai reagir com um “eu avisei? Se tivéssemos feito isolamento vertical teria sido diferente”. Quem diz que, diante do caos instalado, os cidadãos não acreditem nele? Não tenho coragem de negar essa possibilidade.

O que quero provocar com minha reflexão é que devemos, urgentemente, pensar em narrativas sobre a pandemia. Narrativas que nos preparem para esse cenário da reversão da impopularidade bolsonarista. Narrativas que consigam sobrepor-se às narrativas bolsonaristas. Narrativas que dialoguem com a população de classe média e com os mais vulneráveis. Os brasileiros estão morrendo e ficarão sem emprego. Sabemos, muito bem, que em momentos de crises profundas, a construção da verdade é um jogo complicado.

Imploro, de joelhos, àqueles que têm o poder político e comunicativo para poder construir essas narrativas que derrubem a retórica bolsonarista. Eu pensava que Bolsonaro poderia ser mais uma vítima do coronavírus, mas hoje tenho minhas dúvidas. Para além de frentes antifascistas, devemos articular entre todos aqueles que defendem a democracia e a vida um relato sobre a crise sanitária e a crise econômica que coloque Bolsonaro no centro da responsabilidade. O futuro está em aberto. Não permitamos que Bolsonaro se reconstrua sobre os mortos.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo