"Escrever é uma maneira de Sangrar" Conceição Evaristo Becos da Memória é o título do livro (Rio de Janeiro: Pallas, 2...

Becos da Memória

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"Escrever é uma maneira de Sangrar"
Conceição Evaristo

Becos da Memória é o título do livro (Rio de Janeiro: Pallas, 2017) da escritora, poeta, ensaísta mineira Conceição Evaristo, ganhadora do Jabuti 2015. Conheci Conceição nos anos 2000, por ocasião dos Seminários Mulher e Literatura, por intermédio da minha amiga e co-orientadora do Doutorado, professora da UFSC, Simone Schmidt, que escreve o posfácio do livro. Depois a encontrei com minha amiga Flávia Santos, colega no DLEM-UFPb, especialista nessa autora
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e em outras da Literatura produzida por mulheres pretas.

Conceição, aquela figura alta, de coque, com roupas estampadas, voz macia e suave, olhos atentos, chamava sempre a atenção de todas nós, e a minha em particular. Timidamente, aproximei-me algumas vezes, para ouvi-la nessas palestras, em auditórios lotados e atentos à sua fala, e a todo o seu talento e vivência como escritora e criadora do conceito - "Escrevivência" (escritura e vida, a partir da subjetividade das mulheres pretas), que se opunha à episteme europeia, e questionadora do cânone. Uma escrita que fala do eu, mas que se alarga ao eu-coletivo.

Já diz Conceição na Introdução que, Becos da Memória (2006), foi escrito anteriormente ao romance Ponciá Vicêncio (2003), e o seu primeiro experimento onde tentava confundir escrita e vida. Escrita e vivência! Escrita essa que surgiu a partir de uma crônica de 1968, quando tentava descrever as ambiências de uma favela. Memórias e esquecimentos que surgiram rápido, mas que levaram 20 anos para o livro fosse publicado. Memórias que Conceição diz, sem pudor, que inventa sim, pois "entre o acontecimento e a narração do fato, há um espaço em profundidade, é ali que explode a invenção", e ainda: "Busco a voz, a fala de quem conta, para se misturar à minha."

Becos da Memória é um romance em forma de relato, testemunho, até como forma de um diário de experiências, onde mais de 80 personagens aparecem e desaparecem. Personagens esses que tem nomes deveras sugestivos na grafia e na semântica, dialogando com esse espaço periférico de miséria e abandono que o Brasil
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tão bem conhece e esquece. Nomes como: Maria Velha, Maria Nova, Bondade, Homens-vadios-meninos, Nega Tuína, Zé Meleca, Fuinha, Mundica, Negro Alírio, Sô Ladislau, Filó Gasogênia, os Zeferinos, os Bigodes, os Arcanjos, os Banguelas, os Nascimentos, e tantos outros nomes sem nomes, que passeiam pela cara do leitor com seus relatos de fome, abandono, suicídio, morte, incesto, crime, exploração, flagelo, apartação social e todas as misérias do estômago e da dignidade humana.

O título também vem de um glossário dos becos que uma favela se denomina: "Bico do Rala-Bunda, Beco da Cumadre Joaquina, Beco dos Dois Irmãos, Beco das Duas Marias, Beco do Sem alma, Beco dos Namorados, Beco da Cruz Credo... ela procurava uma saída."

"Vó Rita dormia embolada com ela" — assim começa o romance. E essa "Outra", se torna um enigma só sendo desvendado ao final do livro. Alguém que sofre de uma doença que desfigura, e, sendo assim, se torna invisível, mais ainda do que os "sadios". Mas na sua introdução, Conceição dá a chave do segredo "Assim nasceu a narrativa de ecos de memória. Primeiro foi o verbo de minha mãe, ela, D. Joana, me deu o mote:

"Vó Rita dormia embolada com ela. A voz de minha mãe a me trazer lembranças de nossa vivência, em uma favela, que já não existia mais no momento que se dava aquela narração,... a entonação da voz de mãe me jogou no passado, me colocando face a face com o meu eu-menina."
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Conceição traça o mapa dessa teia geográfica que ela chama de "senzala-favela". A invasão das construtoras, o trabalho subalterno e escravizado, os patrões, a submissão obrigatória, as lonjuras/discrepâncias de classe, desterritorialização, desfavelamento, expulsão, e o instinto de sobrevivência ao extremo. Pelo meio das suas palavras encontramos tantas pérolas de uma artífice da poesia, mesmo triste e arrebatadora, como:

"A tristeza tem orelha grande e ouvidos fundos."

"Os sonhos dão para o almoço, para o jantar, nunca."

"Tive tanto sonho no almoço de minha vida, na manhã de minha lida, e hoje, no jantar, eu só tenho a fome, a desesperança..."

"... os restos, que muitas vezes ganhava das patroas, eram o excesso dos que tinham muito e que esta sobra era construída justo em cima da falta ou do pouco dos que nada tinham."

Questões da opressão da mulher são duplamente registradas: pela pobreza, pelos homens, e pela vida: "Ele era dono de tudo. Era dono da mulher e da vida. Dispôs da vida da mulher até a morte. Agora dispunha da vida da filha. Só que a filha, ele queria bem viva, bem ardente. Era o dono, o macho, mulher é para isto mesmo. Mulher é para tudo.
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Mulher é para a gente bater, mulher é para apanhar, mulher é para gozar..."

Becos também fala do ato de escrever como um ato de salvação e transcendência. A menina Maria-Nova gostava disso. Tinha consciência de classe, do mundo, e tinha esperança de mudar alguma coisa: "Maria-Nova apertou os livros e os cadernos contra o peito, ali estava a sua salvação. Ela gostava de aprender... lia muito. Lia e comparava as coisas... era a única aluna que chegava às conclusões. Tinha que haver uma "ilusão para se aguentar a viver". E, ao longo do enredo, temos a certeza de que essa história irá ser contada, ou seria o próprio Beco que Maria-Nova um dia contou: Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um pensamento: quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente. "...um dia ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um de todos. Maria-Nova um dia escreveria a fala de seu povo." E Maria fez. E Conceição ecoou essa voz e esse grito nesse romance que é uma ferida. E que ainda sangra.

Conceição esteve no Programa Papo de Segunda (GNT) e falou com toda a sua propriedade sobre: Lugar de fala; experiências em outras centralidades e não mais periféricas; Carolina de Jesus e a sua outra estética em oposição à Norma Culta (ideológica) — Uma língua que dorme no dicionário e uma outra que diz tudo; Oralidade; e falou da escrita como um ato solitário, mas que, quando reverbera, ganha amplitude.

"A nossa história não é para ninar os da Casa Grande, mas para acordá-los dos seus sonhos".

Salve Conceição Evaristo!


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