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Rio

PM que aparece em imagens matando assaltantes em Ipanema vira herói, mas ele agiu corretamente?

O cabo dispara à queima-roupa contra o suspeito de camisa listrada

Imagens de roubos, perseguições e tiroteios no Rio circulam assiduamente pelas redes sociais hoje em dia, mas, há 20 anos, não era nada comum assistir a cenas como as exibidas pelo Jornal Nacional, e reproduzidas pelo GLOBO, mostrando um policial militar baleando e matando dois assaltantes na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, na manhã de uma quarta-feira, em agosto de 1998.

A atitude do PM foi aplaudida pela sociedade da época e pelo poder público, que parabenizou e até promoveu o agente. Mas especialistas em segurança pública divergiram. Enquanto alguns acharam certa a maneira como o homem da farda procedeu, outros viram ali um exemplo da falta de preparo na Polícia Militar. Duas décadas mais tarde, a pergunta continua atual. O policial agiu corretamente?

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"Em dois segundos e meio, o cabo Ponteiro, lotado no 23° BPM (Leblon), matou ontem de manhã dois homens — um deles, armado — que haviam assaltado minutos antes a agência da Caixa Econômica Federal na Rua Visconde de Pirajá 357, em Ipanema", descreveu o GLOBO no dia seguinte. Os suspeitos estavam numa motocicleta parada na Praça Nossa Senhora da Paz quando um guarda municipal alertou o PM. Em meio a pelo menos cinco pedestres que caminhavam na calçada, o cabo puxou seu revólver e foi até eles, apontando a arma. O agente tentou revistar um suspeito colocando a mão na cintura dele, mas o homem impediu o policial e, aparentemente, tentou sacar uma arma. Ponteiro reagiu fazendo seis disparos contra a dupla.

O policial usa a mão direita para revistar o suspeito sentado à frente da moto

O assaltante reage à revista do policial e aparentemente leva a mão à cintura

Ao comandante do 23° BPM (Leblon), Ponteiro, então com 32 anos, explicou que deu voz de prisão aos suspeitos e estava tentando revistá-los quando um deles quis pegar a arma que estava na cintura. Por isso, atirou. Segundo a PM, em dez anos de coturno, aquela foi a primeira vez em que o policial disparou sua arma. 

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No dia seguinte, Ponteiro foi tratado como herói em Ipanema. "O PM, que durante dez anos trabalhou nas ruas de Ipanema de forma quase anônima, foi reconhecido e recebeu cumprimentos efusivos de crianças, professores, comerciantes, profissionais liberais e donas de casa", registrou O GLOBO em 7 de agosto de 1998. Já a Polícia Militar informou que indicaria o cabo para uma promoção. 

Especialistas na área de segurança pública, porém, divergiram ao comentar a ação, em entrevistas ao jornal. Para o então assessor parlamentar Milton Corrêa da Costa, da Secretaria de Segurança Pública, Ponteiro agiu em legítima defesa. Segundo a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o policial foi "corajoso e prudente". Já a advogada Elizabeth Sussekind, da ONG Viva Rio, disse ao GLOBO na época que o cabo "arriscou sua vida e de quem passava pela praça em uma abordagem aparentemente corajosa mas totalmente inadequada (...) Ao invés de pedir ajuda à sua corporação, agiu sozinho". 

O cabo dispara à queima-roupa contra o suspeito de camisa listrada

O suspeito da frente começa a cair da motocicleta, após ser baleado

Para o antropólogo Paulo Storani, ex-oficial do Batalhão de Operações Especiais (Bope), pode haver divergência jurídica sobre o que configura ameaça à vida do policial. Vinte anos após o episódio, ele diz que, enquanto alguns juristas acham que uma ameaça apenas se caracterizaria com um disparo do suspeito, outros dizem que, se alguém comete um crime com uma arma na cintura, assume a disposição, e os riscos, de usá-la. Na opinião de Storani, ex-policial e agora estudioso do tema, Ponteiro foi correto. 

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- Como agir na urgência e diante de tanta incerteza? Como avaliar as alternativas e decidir num espaço tão curto de tempo? É preciso pensar que há um ser humano ali exercendo uma atividade que há muito tempo extrapolou os limites do alto risco. Estou certo de que o policial ali agiu adequadamente - diz Storani.

Para ele, se o cabo optasse por chamar reforço, os bandidos escapariam. Mas, na opinião da socióloga Maria Isabel Couto, pesquisadora do Iser, essa deveria ter sido justamente a atitude do policial, uma vez que ele não poderia ter colocado em risco a vida dos pedestres em volta, nem a dele e nem a dos suspeitos, que , para ela, deveriam ter sido presos, e não mortos.

- O que mais questiono nesse episódio é a reação da sociedade que viu sucesso numa ação policial que resultou em morte. Toda ação policial que leva a morte deveria ser  profundamente investigada. A função principal do estado é proteger a vida, e a morte tem que ser vista como tragédia - critica a socióloga, antes de fazer uma reflexão: - Esse episódio mostra que a gente pouco avançou de lá pra cá. A forma como a gente ainda legitima a ação policial que tira a vida do suspeito coloca todos em risco, porque leva muitos bandidos a cometer um crime preparados para matar ou morrer. Essa cultura causa a morte de PMs, criminosos e inocentes. 

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Ainda na opinião da pesquisadora, "claro que em medidas extremas a arma deve ser empregada, mas o uso ficou banal". No caso de 20 anos atrás, para Maria Isabel, o policial deveria ter calculado que sacar sua arma poderia colocar em risco as pessoas ao redor dele. Ao mesmo tempo, ela reconhece que Ponteiro poderia ser criticado por isso, justamente por causa da disseminada cultura de violência. 

- Provavelmente, alguém diria que ele estava mancomunado com os suspeitos. Mas, às vezes, não agir é mais indicado do que agir - opina a socióloga. - Mas a culpa é da instituição que não prepara o soldado, ele deveria proteger a vida em primeiro lugar.

A equipe do GLOBO entrou em contato com o policial Ponteiro, para saber se ele agiria da mesma forma hoje. Mas, hoje aposentado como subtenente da PM, ele disse, por telefone, que não queria dar entrevista.

Colaborou Marta Szpacenkopf

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