Deslavajatizar, por quê?, questiona Rodrigo Janot

Operação cresceu e incomodou sistema

Eventuais erros não apagam os fatos

Corrupção é agressão à cidadania

Precisamos ir além de ler os ‘leads’

Rodrigo Janot, quando era procurador-geral da República, em sessão do STF
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Quando estudante em BH, o dia começava cedo. Antes de subir para a faculdade de Direito, a difícil escolha na Praça Sete era onde tomar o primeiro café, sempre coado ­–no Pérola ou no Nice? Um, 2 cafezinhos e lá íamos todos “pitar” (naquela época era politicamente correto), vendo as primeiras páginas dos jornais.

Só era possível ver os “leads”. Mas, pronto, todos nós já sabíamos de tudo e discutíamos sobre todos os problemas do mundo. Pior: dando soluções. Arroubos da juventude! O problema é que esses arroubos hoje estão muito mais arrogantes, alargados e não mais praticados somente por jovens idealistas. Vivemos no Brasil a era do lead. Todos nós sabemos tudo sobre tudo, lendo, apenas, as primeiras páginas dos jornais, capas de revistas ou, na pós-modernidade, posts no Twitter e Instagram.

Essa perspectiva afeta todas as questões, de vacinas à física quântica, e de forma plena, a Lava Jato.

São teorias conspiratórias de toda ordem, que surgem a todo momento, ao sabor da ideologia do autor de plantão. A Lava Jato deve ser uma obra de ficção (jamais houve corrupção no Brasil), criada em Hollywood, Bollywood, ou o que seja, mas sob o inevitável patrocínio da CIA, do Imperialismo Americano!

Aos fatos: empresas brasileiras corromperam políticos e autoridades públicas em diversos países da América Latina e 2 da África. Contratos decorrentes de licitações obtidos pagando suborno e falseando-se a concorrência, além de interferência ilícita em processos eleitorais. A comprovada atuação ilegal desse esquema rendeu vultosos lucros, sem fronteira definida e nessa dimensão: Colômbia, Chile, Peru, Equador, Panama, Venezuela, El Salvador, República Dominicana, Antígua e Bermudas, México, Angola, Moçambique, além do Brasil é claro. E o imperialismo é americano? Somente quando convém, francamente!

Os EUA lançaram ofensiva mundial contra a corrupção logo após eclodir o caso Watergate (1972), que gerou a edição da FCPA (1977), para punir, justamente, empresas americanas que praticassem atos de corrupção FORA DOS EUA. Isso mesmo, no exterior!

Os países capitalistas, aqueles que praticam a livre iniciativa e a livre concorrência, reuniram-se em torno do movimento global de combate à corrupção. Foram editados nada mais, nada menos, do que 4 tratados internacionais: Convenção Interamericana contra a Corrupção; Convenção da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico –essa mesma de que o Brasil pretendia tomar parte ativa, e que, além de não conseguir, recebeu um “pito” da Organização por ter enfraquecido seu sistema de combate à corrupção); Convenção da ONU contra o Crime Organizado e Convenção da ONU contra a Corrupção. Existem, entre outras, 3 rígidas leis internacionais sobre a matéria, bem conhecidas das empresas brasileiras que operam no exterior, as dos EUA, da França e do Reino Unido, esta a mais severa, a despertar profundo respeito daqueles a elas submetidos.

Um CEO da principal indústria petroquímica brasileira acabou de firmar um acordo penal no Tribunal Federal de Nova York –sim, Nova York– em 15 de abril de 2021, por pagamento de suborno feito a um empregado da Petrobras no Brasil –sim, no Brasil. No Peru, o presidente em exercício e todos os ex-presidentes foram alcançados pela Lava Jato de lá, com base em elementos probatórios produzidos aqui. Na França o ex-premiê Sarkozy foi condenado por corrupção. É assim que funciona no mundo evoluído!

Recordar é viver: enquanto a investigação alcançava um determinado grupo de poder, aplausos aos montes. Quando a investigação (e investigação é isso, o desenrolar de um novelo) ampliou o espectro, as reações começaram. O sistema é bruto. Ali pode, no meu quintal não. Para livrar os meus, livraremos todos então. Como contra fatos não há argumentos, criam-se nulidades e narrativas variadas, inclusive espionagem. Engraçado, sobre a materialidade dos crimes ninguém fala, ninguém nega. Todo mundo finge que não vê. Pacto do silêncio condescendente!

Sim, a LJ pode ter cometido erros! Mas os erros de um ou outro agente não podem anular os graves fatos apurados; consequências políticas não podem ser lançadas na conta da LJ: o problema no Brasil foi e é a corrupção e não o seu combate. O combate à corrupção fortalece a cidadania. Verba pública tem que estar no seu devido lugar: saúde, educação, segurança e não no bolso de corrupto! Espante-se com os números. 

Recentemente foi relembrado que a corrupção faz bem à economia. Essa teoria existe. A corrupção seria a graxa na roda da economia. Não é levada a sério em nenhum lugar evoluído do planeta. Existe uma expressão associada à essa teoria: “race to the bottom”, corrida ao fundo do poço, nivelamento por baixo, teoria da competição regulatória. Traduzindo: liberar a corrupção para atrair investimentos.

A dura realidade é que a corrupção agride de forma escancarada a livre concorrência, o desenvolvimento social, o desenvolvimento tecnológico, a eficiência econômica e a política, degradando a democracia: quanto mais corrupção, menos democracia.

Devemos ir um pouco além dos leads das notícias.

Enfrentemos o problema sem evasivas. Sejamos mais responsáveis e honestos com o porvir. Sejamos brasileiros de alma limpa. Como disse Ivan Lins, ESSE É O MEU PAÍS!

autores
Rodrigo Janot

Rodrigo Janot

Rodrigo Janot, 64 anos, foi procurador-geral da República de 2013 a 2017. Em 2019, lançou o livro "Nada Menos que Tudo: Bastidores da operação que colocou o sistema político em xeque", onde narra fatos sobre a operação Lava Jato e sua passagem no comando da PGR.

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