Contas à vista

A síndrome das prioridades invertidas que assola Brasília

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

15 de setembro de 2020, 8h00

Tomo por empréstimo a expressão utilizada por Armínio Fraga em entrevista para Idiana Tomazelli, no jornal "O Estado de S.Paulo", na qual afirma que se gasta "primeiro no que não é essencial e volta ao Ministério da Economia e diz que acabou o dinheiro". "O orçamento existe justamente para evitar esse tipo de negociação sequencial em que tudo é sempre prioritário e é difícil dizer não."

Spacca
Bingo. Excelente análise. A negociação orçamental brasileira sofre da síndrome das prioridades invertidas que assola Brasília. Em outra linguagem abordei o tema quando fiz a correlação entre reserva do possível e escolhas trágicas.

Isso fica ainda mais patente quando se lê dois dias após, em entrevista para a mesma jornalista, o senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC do Pacto Federativo e do Orçamento para 2021, afirmar que "Não haverá gasto mínimo para educação e saúde". A jornalista insistiu perguntando se não mais haverá valores mínimos no orçamento para gastos com educação e saúde, recebendo como resposta que "se depender de mim, não". "O Congresso tem que pensar no país." E acresceu: "Ninguém vai tirar um real, Apenas estamos devolvendo ao Estado e ao município o poder de legislar sobre o direito dele." Para o senador, "todo mundo sabe que a educação está uma porcaria." Minha dúvida é se, deixando de vincular recursos, haverá melhora na educação e na saúde dos brasileiros.

Parecem-me afirmações contraditórias, pois ninguém obriga os entes federados a gastar mais em educação e saúde, mas a norma constitucional impede que seja gasto menos. Aqui, no meu sentir, existem diferentes problemas sendo tratados de forma errada. Uma coisa é a qualidade do ensino e da saúde, outra é sua garantia financeira. Retirar a garantia financeira certamente fará piorar a qualidade, porém, retirando-a, a má qualidade, piorará. Sempre digo que no fundo do poço há um alçapão, pois sempre há espaço para tornar tudo pior.

Nem mesmo o argumento da liberdade do legislador orçamentário deve ser considerado, pois a desvinculação pretendida só acarretará menos gastos sociais, pois mais gastos nessas rubricas sempre foi permitido.

Observe-se que tais propostas vicejam, (1) quanto à saúde, no ano da pandemia, no qual o SUS vem se destacando como um sistema fundamental para o atendimento médico da população brasileira, o que é internacionalmente reconhecido, e, (2) quanto à educação, no momento em que ocorre um tsunami migratório de alunos do setor privado para o setor público em razão da crise, conforme se lê no relato da jornalista Luciana Alvarez, na Folha de S.Paulo de 13 de setembro: "Em SP , número de transferências para a rede pública é dez vezes maior do que em 2019”.

Ou seja, em tempos de crise sanitária e econômica, em que os setores públicos de saúde e de educação devem ser reforçados e ampliados, a política pública apontada pelo governo Bolsonaro é no sentido de reduzir gastos nesses setores. Não poderia haver pior oportunidade para a adoção de medidas liberais como essas, pois a rede de proteção social necessita ser ampliada e não desmantelada.

Será que tal barbaridade passa no Congresso? Nunca se sabe qual pensamento político preside as maiorias parlamentares advindas das eleições de 2018, ocorridas 30 anos após a redemocratização brasileira. Ulysses Guimarães, que era do mesmo partido do senador Márcio Bittar, deve estar se revirando no túmulo, pois lutou tanto para que houvesse uma proteção financeira para estes direitos sociais na Constituição de 1988 para que, com uma canetada, isso fosse descartado.

Caso a questão chegue ao STF espera-se que este faça valer o artigo 60, parágrafo 4º, IV, da Constituição, que proíbe que sequer haja deliberação sobre "proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais". Direitos fundamentais sociais, que são prestacionais, exigem gastos públicos, caso contrário se tornam apenas tinta sobre papel, sendo necessário haver uma garantia financeira para sua efetiva concretização.

A síndrome das prioridades invertidas que assola Brasília tem também em destaque o corte do orçamento do Ibama e do ICMBio, mesmo quando o Pantanal arde em chamas e as bordas da Amazônia vão sendo desmatadas. No mesmo sentido identifica-se a alocação de mais verbas para o Ministério da Defesa do que para o Ministério da Educação no orçamento para 2021, embora este ainda tenha mais recursos, conforme esclareceu o governo. Exemplos não cessam.

Tudo isso aponta para uma espécie de negacionismo financeiro, ou, de forma mais polida, para a síndrome das prioridades invertidas que assola Brasilia.

Autores

  • é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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