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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.66 no.3 Rio de Janeiro  2014

 

ARTIGOS

 

Uma história da psicologia em revista: retomando Mira y López*

 

A history of psychology in review: resuming Mira y Lopez

 

Una historia de la psicología en revista: retomando a Mira y López

 

 

Hildeberto Vieira Martins

Docente. Universidade Federal Fluminense (UFF). Rio das Ostras. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo pretende discutir a obra de Emilio Mira y López e analisar sua importância para a história da psicologia no Brasil. Analisar a trajetória pessoal e profissional desse autor nos auxilia na compreensão do surgimento de certas estratégias de difusão do saber e da prática em psicologia em várias décadas do século XX (1930-1960). Pretende-se, a partir de análise documental e revisão bibliográfica, discutir a atuação de Mira y López na montagem de certos meios de difusão da ciência psicológica: criação de recursos técnicos e teóricos para a atuação profissional (PMK), formação de psicotécnicos, organização do periódico Arquivos Brasileiros de Psicotécnica (ABP) e fundação e direção do Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP). O objetivo é demonstrar como essa produção está marcada pelo debate existente na época sobre o papel do especialista nos rumos da sociedade brasileira.

Palavras-chave: Emilio Mira y López; Sociedade brasileira; História da psicologia.


ABSTRACT

This article intends to discuss the work of Emílio Mira y López and to analyze its importance for the history of Psychology in Brazil. The analysis of the personal and professional trajectory of such author helps to understand the emergence of certain strategies of diffusion of knowledge and practice in Psychology in the first decades of the twentieth century (1930-1960). It is intended, from a documentary analysis and a literature review, to discuss the role of Mira y López when it comes to the dissemination of psychological science: creation of technical and theoretical resources for professional performance (PMK or Mira's test), psychometric training, organization of the Brazilian journal named Brazilian Arquives of Psychometric, in Portuguese: Arquivos Brasileiros de Psicotécnica (ABP) and the foundation and direction of the Professional Selection and Guidance Institute - Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP).The goal is to demonstrate how such production is marked by the current debate about the role of this specialist in the course of Brazilian society.

Keywords: Emílio Mira y López; Brazilian Society; History of Psychology.


RESUMEN

El artículo pretende examinar la obra de Emilio Mira y López y analizar su importancia para la historia de la psicología en Brasil. Analizar la trayectoria personal y profesional de este autor nos ayuda a entender cómo surgieron ciertas estrategias de difusión del conocimiento y la práctica de la psicología en varias décadas del siglo XX (1930-1960). Desde el análisis documental y la revisión de la literatura, se pretende analizar el papel de Mira y López en el montaje de ciertos medios de difusión de la ciencia psicológica: la creación de recursos técnicos y teóricos para la práctica profesional, como el Psicodiagnóstico Miokinético (PMK), la formación de psicotécnicos, la organización de la revista Arquivos Brasileiros de Psicotécnica (ABP) y la fundación y dirección del Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP). El objetivo es demostrar cómo esta producción está marcada por el debate existente en esa época sobre el papel del especialista en el curso de la sociedad brasileña.

Palabras clave: Emilio Mira y López; La sociedad brasileña; Historia de la psicología.


 

 

Introdução

A produção de uma análise histórica dos saberes psicológicos (ideias e práticas) pode ser pensada e realizada de diversos modos. Antes de prosseguir, cabe um esclarecimento sobre o uso da expressão saberes psicológicos. Nos últimos anos, uma série de trabalhos em história da psicologia tem utilizado essa expressão para definir o campo discursivo que abarca as práticas produzidas pela psiquiatria, psicologia e psicanálise no que tange ao entendimento e funcionamento daquilo que se convencionou chamar de "alma", comportamento, mente, "espírito", ou seja, o polo de oposição ao que se chama de corporalidade estrita (Dias Duarte, 1997, 2001; Jacó-Vilela, 1999). Considera-se, portanto, que saberes psicológicos são o conjunto de disciplinas que estudam os fatores psíquicos, à luz de uma concepção científica ou cientificizante, assim como sua relação estreita com a descrição das categorias de normal e patológico.

Mitsuko Aparecida Makino Antunes (2005), ao discorrer sobre os fundamentos de uma pesquisa em história da psicologia, cita quatro correntes historiográficas e suas possíveis formas de abordagem teórico-metodológica: materialista histórico-dialética, presentista, economicista e positivista. Esse breve apontamento serve para afirmar a diversidade com que determinado fenômeno social é discutido e analisado (de maneira cronológica, genealógica, histórico-social, etc). Ao optarmos por certa escolha, podemos tentar construí-la a partir de seus agentes, das estratégias discursivas e dos aparelhos institucionais (e de seus projetos sociais e tecnológicos) que possibilitaram a formação de certa "ossatura" institucional e social.

O que pretendemos é uma tentativa de mapear parte dessa história a partir da análise do papel relevante que tiveram para a psicologia no Brasil os projetos institucionais (modelos teóricos, recursos técnicos, serviços institucionais) realizados pela figura polivalente de Emilio Mira y López (1896-1964), que atuou e deixou significativas contribuições em áreas como a medicina, psiquiatra, psicoterapia e psicologia. Para alguns autores (Mancebo, 1997, 1999; Rosas, 1995; Rosas & Silva, 1997), o processo de autonomização da psicologia se deu em decorrência de determinado momento histórico pelo qual passava a sociedade brasileira e que favoreceu a atuação do chamado especialista (cientista) como o principal diagnosticador dos problemas sociais. É nesse cenário que tanto o Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP), serviço criado em 1947, quanto o periódico Arquivos Brasileiros de Psicotécnica (ABP), revista criada em 1949, tornaram-se os principais veículos de fomentação e divulgação da psicologia aplicada e da formação de psicotécnicos no Brasil.

A idealização e a execução dos projetos institucionais de Mira y López deveram-se em grande parte ao ideário modernizante que já vinha sendo difundido e aceito na sociedade brasileira. Um "Brasil moderno" viria surgir pelas mãos e ambições de uma parcela da sociedade brasileira (os intelectuais), que, ao mesmo tempo em que idealizou esse novo Brasil, colocou em execução programas voltados para a consecução de reformas conjunturais capazes de eliminar o nosso suposto atraso social. Por isso, é significativo afirmar que o contexto social em que a obra intelectual e a atuação profissional de Mira y López foram desenvolvidas não está desconectado das propostas políticas mais amplas de reestruturação social, baseadas no uso do conhecimento instrumental e racional desenvolvido a partir do modelo capitalista. Esse processo social configurou o indivíduo moderno como objeto (de estudo) de um certo especialista, responsável por definir seu lugar e seu papel nessa nova sociedade. Por isso, não parece ser por acaso que as linhas de atuação de Mira y López foram as mais variadas e tiveram grande repercussão no Brasil.

Nosso objetivo é demonstrar como esse modelo social viabilizou a criação e a ampliação crescente de um espaço propício à constituição de um conhecimento efetivo ("prático"), capaz de favorecer a profissionalização e a autonomização da psicologia. É esse o mesmo contexto que envolveu a criação do primeiro periódico de psicologia brasileiro de circulação nacional, os Arquivos Brasileiros de Psicotécnica (posteriormente denominado Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada e atualmente intitulado Arquivos Brasileiros de Psicologia). Esse periódico cumpriu o papel de veículo de difusão e aglutinação do debate de um campo científico ainda em formação àquela época. Além do mais, podemos considerar que as temáticas apresentadas por esse periódico não se afastavam das discussões da época e que giravam em torno da ideia da formação de uma nova nação brasileira. Consequentemente, podemos ver refletida nos trabalhos publicados nos Arquivos Brasileiros de Psicotécnica uma série de propostas e ideias voltadas para a implementação de certa concepção de Estado e de sociedade brasileira que se desejava alcançar. Por isso, encontramos nessa publicação artigos que tratam de temas como a delinquência (Mira y López, 1961), a questão racial (Ginsberg, 1951), agressividade e periculosidade (E. Mira, A. Mira, & Oliveira, 1949) e biotipologia (Weil, Lellis, Maia, & Figueiredo, 1954), entre outros assuntos ligados aos ditos problemas sociais da época.

A revisão bibliográfica que Athayde Ribeiro da Silva (1964) faz da obra de Mira y López divide sua produção em três períodos distintos: "a espanhola (mais ou menos de 1919 a 1939); a peregrinação internacional (de 1939 a 1945); e a brasileira (de 1945 a 1964)" (Silva, 1964, p. 7). Optando por seguir essa delimitação cronológica como recurso analítico, focalizaremos nossa investigação quase exclusivamente na "fase brasileira" de Mira y López, já que esse período histórico pode ser considerado como aquele que teve mais impacto na constituição da história da psicologia brasileira, no que tange ao seu processo de profissionalização. Esse recorte é uma tentativa de pensar como certos fatores favoreceram a constituição da autonomização do saber psicológico e assim poder compreender que mecanismos sociais propiciam que a questão do indivíduo moderno e sua intimidade interiorizada passem a ser imaginadas como rotina e regra para pensar a individualidade humana. Contudo, é evidente que só a configuração de vários fatores (sociais, econômicos e políticos) permitiu que a profissionalização dos psicólogos se desse de maneira institucionalizada, ou seja, constituísse um campo teórico/prático detentor de certa especificidade de atuação e de reprodução de um saber especializado.

Nosso objetivo, portanto, é compreender como determinados fatores (históricos, políticos e sociais), surgidos em meados do século XX (décadas de 1930-1960), alicerçaram os meios para que a demanda por essa nova ciência encontrasse espaço para se consolidar, a ponto de tornar urgente e prioritária a criação de mecanismos institucionais formadores de um novo indivíduo (produção de uma "nova mão de obra" especializada), fundamental para a construção de um Brasil moderno.

 

Uma longa estrada e seus obstáculos: breve histórico de Emilio Mira y López

Sabemos que Mira y López nasceu em Santiago de Cuba, então colônia espanhola, em razão de seu pai, Rafael Mira Merino, médico militar e especialista em doenças tropicais, ter passado um breve período nesse país por motivos profissionais. Após o início da guerra entre Espanha e Estados Unidos (Guerra Hispano-Americana), iniciada em 1898, e que provocou a independência de Cuba do jugo espanhol, a sua família retornou para a Espanha, instalando-se inicialmente na Galícia e depois em Barcelona. Ele foi o único filho do terceiro casamento de seu pai, e sua escolha profissional parece ter sofrido a influência paterna, já que também optou pela medicina, carreira na qual recebeu vários prêmios. Começou seus estudos em Barcelona, mas terminou-os na Faculdade de Medicina de Madri, ao defender a tese Correlações somáticas do trabalho mental, em 1922.

No início de sua carreira profissional tentou a especialização em cardiologia, mas logo desistiu por causa do alto custo dessa área. Passou então a se dedicar aos estudos psicológicos, área na qual se destacaria por toda a vida. Em 1919, tornou-se chefe do Laboratório de Psicofisiologia do Instituto de Orientação Profissional de Barcelona e, no ano seguinte, da Seção de Psicologia da mesma instituição. Dirigiria o Instituto de Orientação e Seleção Profissional (Psicotécnica) de Barcelona em 1926. Em 1933, tornou-se o primeiro ocupante da cátedra de Psiquiatria na Espanha, criada na Faculdade de Medicina da Universidade de Barcelona, quando escreveu um manual sobre o tema.

Participou de vários congressos internacionais nas primeiras décadas do século XX, como o Primeiro Congresso Internacional de Orientação Profissional, em 1920, presidido por Édouard Claparède, e o VII Congresso Internacional de Psicologia, realizado em Oxford, em 1923, do qual participaram Kurt Köffka, Édouard Claparède, Wolfgang Köhler, Henri Piéron e Alfred Adler, entre outros. Participou, em 1930, do IX Congresso Internacional de Psicologia, ocorrido em Yale. Ao longo de sua vida profissional, Mira y López participaria de muitos outros congressos, inclusive como representante da UNESCO, em 1960, como expert em psicologia experimental. Na biografia apresentada pela Arquivos Brasileiros de Psicotécnica (1964, pp. 45-50), são contabilizadas 46 participações, até sua morte, em 1964.

Mas não poderíamos finalizar essa breve trajetória biográfica sem mencionar um interessante aspecto da vida de Mira y López, e que parece ter sido importante para o início de seu processo de peregrinação internacional, resultando nas passagens (e recepções) por certos países: sua atuação política. Ressalte-se que sua filiação ao Partido Socialista da Catalunha se deu bem cedo, apesar de sua recusa em participar de cargos eletivos, por acreditar que vida acadêmica e política não eram conciliáveis (Silva, 1964, p. 10). Os relatos sobre esse período são escassos, o que torna uma análise mais criteriosa bastante difícil. Contudo, sabe-se que ele estava na Suíça, em 1936, participando de um congresso (Congrès des Médecins aliénistes et Neurologistes de France et des pays de langue française), quando a Guerra Civil eclodiu na Espanha. E, com a iminência da vitória franquista, Mira y López e sua família decidem sair do país.

Sua primeira parada, das várias que ocorreriam, foi a França, onde, desafortunadamente, permaneceu detido em um campo de concentração. Essa detenção parece ter relação com sua identidade espanhola ou com as informações sobre ele que eram provenientes de lá, já que logo em seguida decide providenciar passaportes cubanos para ele e sua família (Rosas & Silva, 1997, p. 135). Ao chegar a Paris, foi ajudado por Henri Piéron, mas, sem encontrar condições propícias para permanecer com sua família, teve que partir novamente. Passou por vários países (Inglaterra, Estados Unidos, Cuba, Argentina e Uruguai), até fixar residência definitivamente no Brasil, em 1947. Mas, mesmo no Brasil, não deixou de acompanhar e se manifestar sobre os acontecimentos que ocorriam na Espanha franquista, como é possível verificar por sua participação em uma reunião na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), em 28 de fevereiro de 1946, convocada para discutir a condenação de dez espanhóis que lutavam por mais liberdade naquele país (essa informação pode ser lida na matéria do Correio da Manhã intitulada Os exilados espanhóis e os crimes de Franco, de 27 de fevereiro de 1946).

Ao que parece, o engajamento socialista de Mira y López não o abandonaria. E foi esse mesmo passado socialista que serviu de estopim para desencadear uma acusação contra ele, em 1955, de "agente comunista" e "colaborador de jornais comunistas", feita pelo deputado Seixas Dória, que protocolou um requerimento junto ao Ministério do Exterior inquirindo sobre os antecedentes políticos de Mira y López. Seu argumento era que Mira y López já teria sido expulso de vários países sul-americanos, e a causa provável seriam suas supostas atividades comunistas (Correio da Manhã, 1955a). Ele foi defendido na tribuna do Congresso Nacional pelo deputado Adahil Barreto de Cavalcante (UDN-Ceará) e contou ainda com o apoio do jornal Correio da Manhã (na coluna de título sugestivo: Antiespírito), do dia 26 de novembro do mesmo ano, que o definiu como "refugiado político" (Correio da Manhã, 1955b; Diário do Congresso Nacional, 1955).

A permanência definitiva de Mira y López no Brasil se fez a partir da década de 1940, com o convite para trabalhar na Fundação Getúlio Vargas e organizar o ISOP. A partir de sua fixação profissional nessa instituição, a atuação de Mira y López para a história dos saberes psicológicos no Brasil é bastante significativa: seus projetos institucionais foram reproduzidos em vários Estados brasileiros. Seu teste, o psicodiagnóstico miocinético (PMK), foi usado em larga escala para as mais variadas finalidades diagnósticas, e suas muitas publicações (sobre psicologia jurídica, psicologia do esporte, psicologia da infância e da velhice, psiquiatria, personalidade, etc.), foram reeditadas constantemente. Suas ideias e projetos institucionais apresentavam uma afinidade eletiva (Lowy, 1989) com o momento histórico pelo qual passava a sociedade brasileira, e os efeitos dessa "fusão de almas" serão discutidos a seguir.

 

A consolidação de um "Brasil moderno" e a "Era Vargas"

A ideia de um Brasil moderno foi um projeto construído na confluência de várias disputas e divergências que se constituíram na passagem do século XIX para o século XX e se consolidariam nas décadas de 1920 e 1930 (Herschmann & Pereira, 1994). Esse Brasil moderno se delineia valendo-se do ideário republicano e de ideias importadas e adotadas por seus defensores, as quais assumiriam, em nosso país, roupagem bastante diferente da que tiveram na Europa, na tentativa de promover a legitimação do regime que se iniciava: desejava-se uma sociedade nova, que se livrasse do atraso e do obscurantismo praticado por aqueles que até então haviam governado o país através do modelo monárquico (Carvalho, 1990).

A nova sociedade teve um período de gestação bastante longo, e que se tornaria conhecido como República Velha (1889-1930), caracterizado pela força política das oligarquias regionais e pela ineficiência de um poder centralizador.

É a crise desta estrutura política, econômica, social e cultural que marcará a vida brasileira durante a década de 1920, culminando na Revolução de 1930. A partir de então, começava-se a implementar não apenas uma nova ordem republicana, mas, sobretudo, um novo modelo de Brasil, o modelo de um Brasil moderno (Herschmann & Pereira, 1994).

Em outros termos, configurava-se uma nova utopia nos cenários nacional e internacional, em que ideias e noções como moderno e modernidade ajudariam a conformar uma nova mentalidade político-social no Brasil. Para participar dessas transformações, o país deveria tornar-se moderno, projeto que foi consolidado pela "Era Vargas" (p. 12).

Os primeiros trabalhos psicotécnicos feitos no Brasil ocorreram na década de 1930, período considerado fundamental para o desenvolvimento industrial do país. O termo psicotécnico, hoje em desuso, seria substituído posteriormente por psicologia aplicada, já que alguns autores consideravam que a designação psicotécnico atribuía ao profissional e ao trabalho psicológico um caráter meramente manipulador ou o reduzia a uma mera tecnologia mecânica (Schneider, 1955). Os saberes psicológicos (psicanálise, psiquiatra e psicologia) se inserem nesse novo contexto como ferramentas úteis para pensar e repensar o homem e suas relações com a realidade (considerada como o polo externo). O modelo psicológico pensado e implementado por Mira y López foi o da psicologia aplicada, efetivamente utilizado nos campos da educação, da clínica e do trabalho com o objetivo de responder concretamente aos problemas apresentados e resolvidos a partir da "criação de técnicas que facilitassem o diagnóstico e a intervenção do psicólogo" (Mancebo, 1997, p. 162). E se pensarmos que esse período foi marcado pela ideia de organização racional do trabalho, as propostas da psicologia aplicada se adequaram claramente ao modelo de transformação e modernização da sociedade brasileira.

Na década de 1930, o sistema social brasileiro ainda era dominado pelo modelo do latifúndio rural, que posteriormente cederia espaço ao desenvolvimento de um sistema moderno de produção industrial, adotado como a nova realidade do Estado brasileiro em processo de formação. Nesse mesmo contexto, diversas outras ideias seriam adotadas pelos setores público e privado. Entre elas, como já foi mencionado, o princípio da organização racional do trabalho, cuja atenção se voltaria para a escolha e o treinamento técnico dos profissionais. Não parece casual que os primeiros estudos em psicologia do trabalho tenham acontecido em São Paulo, o principal polo industrial de uma burguesia emergente que sobrevivera à grande crise mundial de 1929 e a um revés político (Revolução Constitucionalista de 1932), com o engenheiro Roberto Mange e que eles estivessem voltados para a seleção e a orientação de aprendizes (da rede ferroviária paulista). Mange tinha nacionalidade suíça, mas optou pela naturalização brasileira. Ele foi engenheiro e professor da Escola Politécnica e da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde provavelmente se realizou o primeiro curso de psicotécnica brasileiro, em 1934. Estabeleceu uma série de modificações no processo de seleção e profissionalização em São Paulo, tendo sido um dos idealizadores do Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), criado em 1931 (cf. Langenbach, 1982, p. 27; Rosas & Silva, 1997, p. 12). Ele parece ter tido um papel decisivo na vinda de Mira y López ao Brasil (cf. Rosas & Silva, 1997, p. 14).

Nas primeiras décadas do século XX, a mão de obra especializada ainda vinha essencialmente de fora do país, e isso gerava alguns problemas para o Estado brasileiro. De acordo com Langenbach (1982), esses mesmos problemas, todavia, permitiriam o surgimento de um novo profissional especializado

em escolher adequadamente a força de trabalho, tendo para isso como parâmetro fundamental o exame das aptidões e do caráter, assim como a ação sobre o seu treinamento, isto é, influenciar o próprio processo de aprendizagem visando a um rendimento maior (p. 24-25).

Em 1945, época da chegada de Mira y López no Brasil, as discussões sobre os "atrasos" do país já não podiam ser colocadas da mesma forma que em 1930. Novos acontecimentos haviam tomado vulto, e eram outras as necessidades a serem solucionadas pelos especialistas. Na primeira etapa da atuação dos modelos psicotécnicos, prevaleceu a estratégia da seleção, e não o processo de orientação profissional, ou seja, a busca era de trabalhadores para um certo tipo de serviço, e não a orientação para uma melhor capacitação do indivíduo, de acordo com suas capacidades e qualidades.

A partir da década de 1940 preponderou outro entendimento em relação às atribuições destinadas ao Estado e ao setor privado, qual seja, o de que essas instituições deveriam ser mais sensíveis em relação à formação e às potencialidades do trabalhador brasileiro. Esse era o entendimento que Mira y López defenderia, ao enfatizar o caráter complementar do processo de seleção e destacar que esse processo deveria ser global (Rosas, 1997, p. 14). E não seria por acaso que data dessa época de mudança de paradigma o movimento de criação de várias instituições voltadas para a formação do trabalhador, tais como: o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), de 1942; o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), de 1946; a Fundação Getúlio Vargas (FGV), de 1944; e o próprio ISOP, de 1947. É sob o espectro da preocupação com a formação de uma mão de obra qualificada e de técnicos especializados que possam medi-la e avaliá-la adequadamente que o campo das técnicas do trabalho surge e tenta dar conta das questões em jogo no desenvolvimento da sociedade brasileira na década de 1940, já que o trabalho assalariado vai se consolidando como o fator capaz de inserir socialmente o trabalhador (qualificado) nessa sociedade industrializada.

Efeito de uma sociedade vivendo o processo de industrialização, o papel do profissional psicotécnico (ou psicologista) se apresenta como a solução possível para os problemas ligados ao trabalho, uma vez que a indústria em crescimento começa a se preocupar com a racionalização do trabalho e as implicações e consequências do fator humano em sua organização. Dito de outro modo, a escolha e a capacitação técnicas passam a ser vistas como um aspecto indissociável do aumento da qualidade do trabalho (maior eficácia), pois "até então não havia nenhum interesse maior pela formação da força de trabalho, nem por parte do empresário, nem por parte do Estado" (Langenbach 1982, p. 25). Talvez possamos dizer que já nesse momento vimos surgir a discussão do mundo do trabalho capitalista em que se preconiza a máxima de que não existe desemprego, e sim trabalhadores não qualificados. Cabe somente ao trabalhador o resultado de sua condição (de desempregado). Os efeitos dessa nova postura em relação ao trabalho e ao trabalhador podem ser sentidos até os dias de hoje.

 

Selecionar e orientar para atender a uma nova necessidade

A primeira vinda de Mira y López ao Brasil ocorreu em 1945, a convite de várias entidades públicas brasileiras, entre elas a Universidade de São Paulo (USP), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), o DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público) e o Centro de Estudos Franco da Rocha. Esse convite, como comentado anteriormente, teve a influência de Roberto Mange. Nessa passagem, proferiu conferências sobre os mais variados campos da psicologia aplicada (personalidade, psicologia jurídica, psicologia do trabalho, etc.), em São Paulo e no Rio de Janeiro. Suas palestras tiveram grande repercussão e acarretaram uma nova vinda ao país no mesmo ano, estadia que se estendeu até 1946, em decorrência de alguns compromissos (curso de um ano ministrado no DASP, intitulado Seleção, Orientação e Readaptação Profissional, e uma passagem por Recife para dar palestras sobre a "criança-problema", a "personalidade normal e patológica", entre outros assuntos).

Dois anos se passaram até que sua estada no país fosse definitiva, em razão de outro convite, feito pelo Dr. João Carlos Vital, da Fundação Getúlio Vargas, para que Mira y López participasse da criação de um órgão voltado para a seleção e a adaptação do trabalhador brasileiro: o ISOP. Segundo Rosas e Silva (1997), a sugestão de seu nome para essa função foi apresentada pelo professor Lourenço Filho, figura de destaque na área de educação e que foi colaborador do próprio Mira y López no ISOP e em outros projetos institucionais (como a Associação Brasileira de Psicotécnica).

A criação do ISOP, com sede no Rio de Janeiro, tinha como principal objetivo a difusão e o ensino da psicologia aplicada em seus campos de atuação, ou seja, a psicologia do trabalho, a psicologia educacional e a psicologia clínica. Para o ISOP, a orientação profissional tinha como objetivo primordial "oferecer a uma elite um processo de escolha mais aperfeiçoado" (Langenbach, 1982, p. 52). O ISOP, modelo institucional de treinamento e ensino profissional, foi reproduzido em alguns Estados brasileiros. Esse modelo foi montado em Minas Gerais, com a criação do SOSP (Serviço de Orientação Profissional), pelo Ministério da Educação desse Estado, em 1949; e na Bahia, a partir da criação do IDOV (Instituto de Orientação Vocacional), vinculado à Universidade da Bahia, em 1959. Ambos os projetos contaram com a colaboração de Mira y López.

O ISOP surgiu, sob os auspícios das ideias nacionalistas e populistas de Vargas, enquadrando-se adequadamente às "necessidades" apresentadas por uma sociedade urbana e industrializada. Pouco a pouco, funcionou como um difusor do conhecimento psicológico que surgia, favorecendo, com seus recursos técnicos e soluções práticas, o ajustamento do trabalhador ao emprego, de acordo com suas "aptidões e vocações" (Rosas & Silva, 1997, p. 22). E se inicialmente pode soar contraditório dizer que o ISOP nasce sob os auspícios do primeiro governo de Vargas (1930-1945), já que sua saída do poder é anterior ao surgimento dessa instituição, não podemos ignorar que a idealização e a criação da Fundação Getúlio Vargas, sede do ISOP, foi encaminhada por Luiz Simões Lopes em 1944, ainda na gestão de Vargas.

A própria idealização de um instituto nos moldes do ISOP havia sido aventada em 1938, por João Carlos Vital Brasil (Freitas, 1973, p. 8; Rosas & Silva, 1997, p. 17). Nessa mesma instituição, Mira y López criaria em 1949, com a cooperação de Lourenço Filho, a revista Arquivos Brasileiros de Psicotécnica. Trata-se da primeira revista no país totalmente voltada para temas ligados à psicologia. De grande circulação, tornou-se o veículo de divulgação dos assuntos psicológicos que mais interessavam tanto ao empresariado nascente quanto à sociedade em geral, principalmente a classe média urbana, frequentemente às voltas com discussões sobre a patologia do comportamento humano ("delinquência juvenil"), os problemas da educação e das crianças ("agressividade em crianças pré-escolares"), ou mesmo sobre métodos para a qualificação de trabalhadores ("psicologia do trabalho"). A tentativa de entender e reformar a sociedade estava presente em alguns dos debates apresentados por esse periódico. A publicação se destacou ainda como o principal canal de divulgação dos eventos de Psicologia ocorridos no Brasil e no exterior.

Os projetos institucionais realizados por Mira y López, sempre com o intuito de popularizar o conhecimento psicológico entre um público leigo cada vez mais interessado em conhecer os problemas e as possíveis respostas ligadas ao campo da interioridade, tornaram-se instrumentos privilegiados da proliferação de uma cultura psicológica (Figueira, 1985). Não podemos deixar de apontar que projetos similares ocorriam no campo acadêmico, como a criação do periódico Boletim, em 1951, organizado pelo Instituto de Psicologia da Universidade do Brasil (atual UFRJ), e do Boletim de Psicologia, também criado em 1949, periódico mantido pela Sociedade de Psicologia de São Paulo, só para lembrarmos de algumas publicações surgidas nesse mesmo período (Lourenço Filho, 1994).

Delimitar o que seria estritamente o campo da psicologia aplicada e o campo da academia seria impossível neste estudo, mas é um debate presente naquele período, marcado pelas tentativas de definição do espaço institucional dos saberes psicológicos em nossa sociedade. No Brasil, a difusão de ideias e práticas psicológicas esteve bastante ligada a grupos organizados fora do âmbito acadêmico, ou seja, a proliferação dos saberes psicológicos desenrolara-se fora dos muros universitários. E esse parece ser o caso do ISOP e dos Arquivos Brasileiros de Psicotécnica: colocar em prática o que era pensado nos gabinetes universitários (Mancebo, 1997, 1999). O próprio trabalho de Mira y López, que situo aqui como representativo daquilo que era considerado a psicologia aplicada (o campo dos psicotécnicos ou psicologistas), não pode ser entendido como parte exclusivamente desse polo (Martins, 1999).

O trabalho desenvolvido pelo ISOP favorecia a articulação do trabalho científico com os problemas cotidianos e com as tentativas de criar ações práticas para a solução dos mesmos. Um exemplo desse esforço foi a realização do treinamento dos funcionários da rede ferroviária, depois de dois grandes acidentes ocorridos por falha humana, e a seleção de motoristas de ônibus no Rio de Janeiro (Langenbach, 1982, Rosas, 1995, Rosas & Silva, 1997). De fato, a facilidade para responder às demandas que se apresentavam fez com que o ISOP conseguisse certa vantagem em relação aos seus opositores acadêmicos, que não viam com bons olhos o que, sob a supervisão do professor Mira y López, era praticado e ministrado como psicologia.

A difusão dessa cultura psicológica permitiu que instituições fossem criadas e certos modelos psicológicos fossem postos à prova. Se essa sociedade seria marcada pelos problemas sociais decorrentes do inevitável "progresso" trazido pela industrialização e urbanização, não tardaria para que ela estivesse atenta às soluções propostas por uma ciência ainda em formação e ao trabalho de seus especialistas.

Por fim, não se pode esquecer que as alianças construídas por esses atores sociais nem sempre foram pacíficas, produzindo crises derivadas das lutas que definiam o que dizer (discurso legitimador) e o lugar em que ele poderia ser dito (criação de espaços institucionais de reprodução do conhecimento científico), e, consequentemente, das querelas surgidas a partir da constituição desse campo. A participação de Mira y López nessas várias linhas de frente e as implicações que daí decorreram demonstram o quanto pensar a história da psicologia a partir de seu trabalho nos permite entender certos aspectos do processo de consolidação da psicologia aplicada no Brasil.

Outra contribuição de Mira y López para o campo da prática profissional foi a criação do Psicodiagnóstico Miocinético (PMK), teste expressivo (de personalidade) que, segundo ele, visava "revelar os traços da personalidade mediante o estudo das atitudes e das tensões dos agrupamentos musculares" (Mira y López, 1949, p. 11). Para ele, essa modalidade de teste era bastante útil por ser um recurso mais prático e de fácil manejo O teste se baseia na análise da expressão gráfica como mecanismo revelador da estrutura da personalidade do indivíduo. Foi elaborado por ele para ser útil em várias atividades: para a seleção de pessoal, para auxiliar em exames psicodiagnósticos (teste de personalidade), servindo em avaliações periciais, aferindo a peritagem para o trânsito ou sendo utilizado para a avaliação de certas categorias profissionais (como motoristas, ferroviários, etc). O PMK foi apresentado oficialmente por Mira y López pela primeira vez em Londres, em 10 de outubro de 1939, no setor de psiquiatria da Academia Real de Medicina, durante seu exílio em decorrência da Guerra Civil Espanhola (Mira, 1987).

Os usos e aplicações do PMK tiveram grande impacto junto à opinião pública brasileira a partir de meados da década de 1950. Discutia-se a necessidade de seleção para os condutores de veículos, em grande parte motivada pelo aumento de acidentes e mortes de trânsito ocasionados pela má condução dos motoristas. Para alguns, esse aumento devia-se à falta de critérios de seleção para a obtenção da permissão de dirigir, o que deveria ser feito "a partir da seleção rigorosa da capacidade psicotécnica dos motoristas" (Correio da Manhã, 1951a, p. 4). Esse debate ficou bem retratado pelos jornais da época, tendo sido Mira y López o principal defensor do uso de técnicas psicotécnicas como meio de selecionar os mais capacitados para a condução de veículos. A polêmica sobre seu uso foi relatada no jornal Correio da Manhã, que descreve as tentativas de entendimento entre a Fundação Getúlio Vargas e o Serviço de Trânsito do Distrito Federal, àquela época dirigido pelo Major Menezes (Correio da Manhã, 1951b). O PMK representou a tentativa de Mira y López de compreender a realidade de sua época e de criar ferramentas que servissem para diagnosticar seus problemas e com isso aperfeiçoá-la, mesmo que isso significasse estabelecer de maneira acrítica e pouco rigorosa o que significa o comportamento normal, o que ficou demonstrado pelas revisões críticas que o teste recentemente recebeu, inclusive com parecer desfavorável para seu uso profissional junto ao Conselho Federal de Psicologia (CFP) (CFP, 2012; Gomide Vasconcelos, Sampaio, & Nascimento, 2013; Pessoto, 2012; Sisto, 2010).

Foi com a atuação nessas linhas de frente - palestrante, organizador de cursos, criador de recursos técnicos e teóricos para a atuação profissional, formador de psicotécnicos e organizador da principal revista de psicologia - que Mira y López faria dos temas psicológicos um assunto presente no cotidiano da nossa sociedade, ao distinguir seu trabalho daquele desenvolvido pelo saber teórico produzido nos espaços acadêmicos de psicologia existentes na época.

 

A regulamentação da profissão como caminho: as lutas para o reconhecimento do campo

O que podemos definir como fator principal para o surgimento de uma nova profissão? Quais são os fatores que permitem que um conjunto de práticas e o conhecimento derivado delas alcancem o estatuto de cientificidade? Quem determina um conhecimento como legítimo? Essas questões perpassam a institucionalização da psicologia como profissão em nosso país, bem como a de toda prática que tem como ambição maior dizer-se ou pretender-se científica.

A participação ativa de Mira y López na regulamentação da profissão de psicólogo ocorreu desde o início do processo, uma vez que o primeiro anteprojeto de profissionalização foi criado pelo ISOP e pela Associação Brasileira de Psicotécnica, instituições das quais ele era, respectivamente, diretor e secretário-geral. Os psicotécnicos já participavam de vários setores dos serviços públicos e privados em quase todo o país quando, em consequência da própria implantação do ISOP e de outros serviços similares, consolidou-se a necessidade de criar normas tanto para a atuação dos que estavam no mercado de trabalho quanto para a formação de novos profissionais (Rosas, 1995, p. 105).

O primeiro anteprojeto para regulamentação da profissão de psicólogo foi elaborado em novembro de 1953 e foi encaminhado ao Ministério da Educação, com o propósito de atender a uma demanda dessa classe emergente e com isso garantir maior organização dos profissionais que lidavam com diagnóstico, seleção e orientação profissional. Contudo, a condução dos debates sobre a regulamentação estabeleceu um embate político que girou em torno dos limites das atribuições do psicólogo, cuja polarização pôs de um lado Nilton Campos e Lourenço Filho (entre outros), ambos catedráticos e teóricos da psicologia, e do outro Mira y López (e membros do ISOP), "formador" e "treinador" de psicotécnicos voltados para a aplicação do saber psicológico. O desenrolar da elaboração de um projeto sobre a regulamentação da profissão expôs uma série de divergências, e uma delas estava relacionada à seguinte questão: a formação desse profissional devia ficar a cargo de instituições universitárias ou podia ser realizada também por instituições não universitárias (como era o caso do ISOP)?

Alguns autores afirmam que a regulamentação da profissão de psicólogo no Brasil ocorreu de forma tardia e que uma das causas desse "atraso" foram as divergências entre os "acadêmicos" e os "práticos" (Mancebo, 1997; Velloso, 1982). Contudo, essa explicação não pode ser considerada unânime (Cf. Brozec & Massimi, 1998). As divergências a respeito da precocidade ou retardamento do processo de profissionalização da psicologia no Brasil podem decorrer da definição ou escolha de quais fatores estabelecem seu efetivo reconhecimento como disciplina autônoma. E até mesmo uma delimitação da periodização histórica da prática profissional em psicologia pode ser pensada e descrita de maneira diversa, seja tomando como base de sua gênese um referencial teórico (a sociologia das profissões), seja a partir da eleição de marcos institucionais (as faculdades de medicina, por exemplo) ligados ao campo da psicologia (Pereira & Pereira Neto, 2003).

Embora pareça evidente que os profissionais que atuavam no mercado de trabalho considerassem que a importância do reconhecimento da carreira de psicólogo era fundamental para o desenvolvimento do campo de atuação, os acadêmicos talvez entendessem que o trabalho do ISOP poderia provocar uma popularização do conhecimento psicológico de maneira superficial, resultando em uma desqualificação científica da psicologia. Além disso, houve também uma forte resistência da categoria médica em relação aos limites do trabalho do psicólogo, muito em função de questões ligadas à atuação na área clínica. Ao que tudo indica, a questão acerca do reconhecimento do atendimento psicoterápico como atribuição dos psicólogos foi um grande entrave para que o projeto tramitasse normalmente no Congresso Nacional e recebesse parecer favorável à regulamentação da carreira de psicólogo (Pereira & Pereira Neto, 2003, p. 24; Silva Baptista, 2010, pp. 11-14).

As divergências existentes entre os atores sociais que participavam desse processo de profissionalização emperravam toda a discussão em torno da regulamentação da profissão de psicólogo. O próprio Lourenço Filho, um dos defensores da importância da psicologia aplicada para a transformação da realidade nacional e relator da Comissão de Ensino Superior do Ministério de Educação e Cultura, deu parecer negativo, por considerar que a aprovação do anteprojeto colocava em risco o exercício de outras categorias profissionais, como a da educação (atendimento psicopedagógico) e, especialmente, a da medicina (atuação psicoterápica). E, aparentemente, nem mesmo a estreita relação profissional existente entre Mira y López e Lourenço Filho fez com que este último mudasse sua opinião contrária à profissionalização da psicologia nos moldes apresentados no anteprojeto.

O processo de regulamentação se estendeu por mais de dez anos, muito por conta das numerosas revisões e alterações que sofreu (Silva Baptista, 2010), tendo se encerrado com a promulgação, em 27 de agosto de 1962, da Lei 4.119. Assinada pelo então presidente João Goulart, a Lei 4.119 estabeleceu as funções do psicólogo e os critérios para sua formação. Quase duas décadas após iniciar sua jornada no país, Mira y López viu nascer a profissão que tanto ajudou a consolidar. Contudo, não pôde acompanhar os desdobramentos que a criação dessa nova profissão acarretou para o desenvolvimento da sociedade brasileira: viria a falecer na bucólica cidade de Petrópolis em 16 de fevereiro de 1964, no Rio de Janeiro.

 

Considerações finais

Este artigo apresentou um breve histórico da vida e obra de Emilio Mira y López e de como suas contribuições puderam servir para a realização de uma análise da constituição e consolidação do campo da psicologia no Brasil. Procuramos demonstrar, a partir de um recorte histórico (meados do século XX), como certos fatores favoreceram a constituição da autonomização do saber psicológico, e como essa autonomização foi incrementada em decorrência do crescente processo de institucionalização da psicologia (o reconhecimento e a profissionalização da atuação do psicólogo a partir da regulamentação do seu exercício profissional).

Os projetos institucionais idealizados e implementados por Mira y López, sempre com o intuito de tornar mais acessível o conhecimento psicológico para um público leigo, interessado em conhecer os problemas e as possíveis respostas ligadas ao campo da interioridade, foram apresentados como exemplos da proliferação de uma cultura psicológica em nossa sociedade. Discutiu-se ainda como a institucionalização do campo psicológico teve como um dos seus fatores de gestação o embate político que girou em torno dos limites das atribuições do profissional de psicologia, cuja discussão pôs em campos opostos "acadêmicos" e "práticos".

A proposta aqui apresentada foi uma tentativa de capturar um determinado contexto que consideramos importante para entender os meandros que permitiram que a psicologia (seus saberes e práticas) fosse se constituindo paulatinamente como uma profissão importante para uma sociedade que tinha como objetivo principal tornar-se "moderna". E para isso precisava contar com a ajuda da ciência, e de especialistas, na construção de um projeto de país que escapasse das armadilhas do "atraso".

 

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Endereço para correspondência:
Hildeberto Vieira Martins
betohvm@vm.uff.br

Submetido em: 31/07/2014
Revisto em: 13/01/2015
Aceito em: 21/01/2015

 

 

* Este texto refere-se à pesquisa sobre História da psicologia realizada com apoio da FAPERJ. É uma versão revista e ampliada do texto intitulado "A psicologia e o Instituto de Seleção e Orientação Profissional na época de Emílio Mira y López". Ver Martins (2005).

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