Reconstruir a crença das pessoas na verdade será um longo processo, diz Salman Rushdie

Em entrevista, escritor anglo-indiano fala de novo romance, jornalismo e democracia

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Buenos Aires

O mais recente romance do anglo-indiano Salman Rushdie, 73, "Quichotte", chega ao Brasil no final de abril, editado pela Companhia das Letras. Nele, o escritor inspira-se no personagem Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616), para retratar seu espanto e suas impressões sobre os Estados Unidos de nossos dias.

Vivendo em Nova York há 21 anos, Rushdie conversou com a Folha nesta entrevista que abre a série Fuga para a Frente, em comemoração ao aniversário de 100 anos do jornal, completados nesta sexta-feira (19).

O escritor anglo-indiano Salman Rushdie em evento de divulgação de livro na Espanha, em 2015 - Eloy Alonso - 7.out.15/Reuters

A conversa foi realizada por videoconferência. Leia a entrevista ou assista ao vídeo. ​

O senhor está vivendo nos EUA. Como lidou com a pandemia? Pôde trabalhar? Eu fui infectado com o coronavírus em março, mas não cheguei a ter problemas respiratórios graves, apenas febre e muito cansaço. Porém, à minha volta, o ambiente estava horrível, ver tanta gente morrendo, inclusive amigos meus...

Quanto a escrever, não consegui ser muito produtivo por vários meses. A tragédia que os Estados Unidos vinham vivendo era tão grande que superou meu instinto criativo. É difícil ser produtivo nesses tempos.

Shakespeare escreveu durante os tempos da praga na Inglaterra... Sim, é verdade [risos]. Ele escreveu "Rei Lear", mas esse era Shakespeare, não eu! O curioso é que uma coisa que fiz, que parece a mais estúpida a fazer em tempos em que os teatros estão fechados, foi escrever uma peça. Estou conversando com produtores e diretores para levá-la aos palcos no ano que vem.

Seu romance mais recente, "Quichotte", lembra o dilema que Jorge Luis Borges (1899-1986) apresentou em "Pierre Menard, Autor do Quixote", um conto que trata de um escritor que tenta reescrever o "Dom Quixote", tal qual o fez Cervantes. Como foi o desafio para você? Eu adoro a história de Pierre Menard, ela é engraçada e inteligente, como tudo o que Borges escreveu. Para mim, a decisão de usar a história de Cervantes não era a inicial. Eu queria escrever um romance panorâmico sobre os EUA que envolvesse uma viagem. A estrada é um gênero nos EUA, tanto no cinema como na literatura. Então no início eu pensei num tipo de "road novel" [romance de estrada].

Afinal, já vivo nos EUA há 21 anos e, nos últimos tempos, sinto que escrevi muito a partir de e sobre Nova York. Eu queria, desta vez, apresentar uma panorâmica do país, ir a regiões não tão liberais, não tão urbanas. No primeiro momento eu pensei num livro de não ficção, em que eu faria a viagem e logo escreveria um livro sobre essas impressões.

Depois, pensei que não devia negar a mim mesmo o uso da imaginação. E, num certo ponto, me veio a ideia de usar o personagem de Dom Quixote, e de pensar no que chamaria a atenção dele nesses EUA da atualidade.

O Dom Quixote de Cervantes ficou louco ao ler muitos romances de cavalaria. O seu Quixote fica louco ao consumir "junk culture", que é basicamente a televisão. Por quê? Eu pensei no que poderia enlouquecer mais a Quixote, se vivesse nos dias de hoje. Quixote pensava que os romances de cavalaria estragavam seu cérebro. O equivalente a isso hoje é a televisão. Não desprezo toda a produção televisiva. Em termos de drama, este é um tempo rico. Ainda mais agora, que temos essas formas longas, de séries com temporadas, que seguem uma lógica novelística.

O que me parece enlouquecedor são os reality shows. Que são tudo menos reais. Se uma pessoa se sentir obcecada por eles, acaba sem conseguir distinguí-los da realidade. Então fiz a experiência e assisti a muitos reality shows. Acho que senti o que Quixote sentiu ao ler os romances de cavalaria. Estragou o meu cérebro [risos].

O senhor sabe que muitos brasileiros estão, nesses dias, obcecados por mais uma versão do Big Brother Brasil? Não me espanta. Há versões do Big Brother em muitos países. Está em todas as partes. E é algo insuportável. Por outro lado, creio que fornece um material com grande potencial para a comédia. E eu queria fazer um livro com um olhar engraçado sobre isso.

É curioso que a forma de amor do Quixote do século 17, trazida aos dias de hoje, vira outra coisa, como assédio ou perseguição. Mudou muito o modo como vemos o amor hoje com relação àquela época? Dom Quixote acredita que é uma pessoa muito romântica, mas ele não conhece a mulher que ama. Ele falsifica isso na sua cabeça. Hoje em dia, a mulher certamente não gostaria de ser perseguida da maneira de antes. Se alguém que você não conhece começa a perseguir você, isso não parece uma coisa muito romântica. Ao contrário. Acho que, com a passagem do tempo, muda a percepção das relações.

Outro problema com que o seu Quixote se espanta nos EUA é a crise dos opioides. Sei que o senhor teve uma perda pessoal relacionada a isso. Como vê a questão do abuso dos opioides nos EUA hoje? De fato, eu perdi uma irmã para os opioides. Isso fez com que o assunto passasse a chamar muito mais a minha atenção. Nos EUA, todo ano, morrem de 50 mil a 70 mil pessoas por overdose de opioides. É uma tragédia colossal, comparável à pandemia [de Covid-19]. E a área em que o vício se instala mais não são as grandes cidades, mas sim as menores, as áreas rurais.

Creio que criamos uma sociedade muito solitária, e o vício é uma resposta a essa solidão e ao sentimento de inadequação da vida. Estranhamente, hoje há tantos modos de comunicação, como este que estamos usando [videoconferência], que não tínhamos até outro dia. Mesmo assim, talvez estejamos mais isolados do que costumávamos estar. Pensei que essa era uma tristeza à qual era necessário prestar atenção.

É uma surpresa também para mim que tantos médicos e farmacêuticos tenham sido corrompidos para deixar que as pessoas se viciem. Claro que é uma porcentagem menor dos médicos, mas me espanta que tenham achado que sua ética era tão barata a ponto de vendê-la. E isso me surpreende, especialmente agora, que temos tanta admiração pelos médicos e pelo que estão fazendo na pandemia. O que médicos e enfermeiras estão fazendo e arriscando para todos nós. Tenho grande admiração por eles, mas os corruptos precisam ser apontados.

O senhor foi muito crítico com relação à gestão de Donald Trump. Agora, como sente o início de governo Biden? Estou muito aliviado só de não ter de ouvir mentiras todos os dias. Gosto do fato de que Biden não diz o nome dele [Trump]. Também não gosto de dizer. Dizemos "o cara de antes". Deveríamos todos fazer assim.

Para mim, o fim daquela gestão foi o dia da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro. Eu não conseguia sair diante da TV e estava horrorizado. Foi o clímax dos quatro anos de mentira. E ,ao mesmo tempo, o que provocou que começasse a se desmontar essa grande mentira que vinha sendo defendida, a de que a eleição foi roubada.

E é tão fácil desmontá-la. Se você analisar, os republicanos foram muito bem na parte de baixo da cédula. Na Câmara [de deputados] e de senadores. E os votos acontecem no mesmo pedaço de papel. Portanto, como poderia ser possível que uma fraude tenha ocorrido apenas na parte de cima da cédula? Não faz nenhum sentido. Mas o poder de comunicar de Trump era alto, e essa mentira iludiu muita gente.

A tentativa de golpe apenas falhou porque os invasores não estavam suficientemente organizados. Havia grupos organizados buscando pessoas para matar, é certo. Mas a maioria não achava que estava fazendo nada de errado, apenas aquilo que o presidente havia pedido que eles fizessem. Achavam que estavam salvando o país. Não podemos dizer que todos eram fascistas, creio até que muitos eram idealistas extremamente equivocados.

Mas finalmente isso acabou, e ainda bem que as notícias de repente ficaram chatas. Não temos de acordar todos os dias perguntando: "o que ele fez hoje?". Essa foi a realidade por quatro anos, uma cascata de mentiras e de políticas contra o ambiente, contra as minorias, contra os aliados, além de acariciar e aproximar-se de ditadores ao redor do mundo, incluindo o Brasil.

O que me parece enlouquecedor são os reality shows. Que são tudo menos reais. Se uma pessoa se sentir obcecada por eles, acaba sem conseguir distingui-los da realidade

Salman Rushdie

Escritor

O governo Trump acabou, mas as fake news persistem. Qual crê que deveria ser o papel do jornalismo profissional nesses tempos? Eu ensino jornalismo na Universidade de Nova York. E basicamente trato do tipo de jornalismo que ficou conhecido como "novo jornalismo", que usa técnicas da literatura para contar uma história de não ficção. O desafio que se impõe é: em tempos em que as pessoas estão tão desconfiadas do jornalismo, até que ponto se podem usar licenças literárias?

É claro que é importante reforçar aos estudantes que não se deve inventar diálogos nem juntar vários personagens num só. E o que é mais importante é que não devemos alimentar a ideia de um mundo em que a verdade seja subjetiva. Que o que você acredita ser a verdade tenha o mesmo valor do que o que outra pessoa pensa que é a verdade.

Estamos vivendo isso na pandemia, com as pessoas que não querem tomar a vacina. Nos EUA, os grupos que são mais resistentes a tomar a vacina são justamente os mais vulneráveis à doença —negros e latinos—, e isso tem uma razão histórica. Eles foram historicamente maltratados pelo sistema de saúde ou tratados como cobaias. Por isso, esse setor da sociedade suspeita muito do sistema de saúde. Isso precisa ser combatido e superado.

O que tenho tentado estudar com meus alunos é como chegar a uma verdade que não seja subjetiva. Que não deixe espaço para que se aceite que a Terra possa ser plana, que a eleição americana tenha sido fraudada, que não se deve tomar a vacina. O jornalismo tem de reconquistar a confiança das pessoas.

Com relação à desinformação sobre as vacinas, o senhor parece otimista. Sim. Quanto mais pessoas forem vacinadas e mais gente perceba que a vacina vai permitir que retomemos nossa vida, esse sentimento contrário vai se diluir. Vai ser como uma bola de neve, cada vez haverá mais gente acreditando que a pandemia vai passar se nos vacinarmos.

E qual o papel da ficção nessa reconquista da confiança das pessoas na verdade? Há um excelente texto da escritora [canadense] Margaret Atwood que parafraseio aqui. Há uma grande diferença entre ficção e mentira. E o que marca essa diferença é que a ficção tenta dizer a verdade sobre os seres humanos e como interagimos e fazemos as coisas. Esse é o propósito da literatura. Ou seja, revelar verdades.

Já o propósito da mentira é o de obscurecer a verdade. Portanto, de várias maneiras, ficção e mentira são os opostos um do outro. Então talvez exista um pequeno papel que a ficção pode jogar nesses tempos.

Se você ler um livro do qual gosta, que fala diretamente a você, pensa: sim, isso é como é, o mundo é assim. Talvez ler bons livros seja parte do caminho de reconstruir o senso do que é o mundo real. Parece um paradoxo dizer que a ficção pode ajudar a verdade, mas penso que é real. Vai ser uma longa viagem, porque o dano não começou com Trump, veio antes dele. O que acontece com a internet —que em muitos casos é uma maravilhosa ferramenta— é que há sites que são totalmente lixo, que propagam todo tipo de teorias da conspiração e que convivem lado a lado com sites verdadeiros. Eles parecem iguais e passam a sensação de ter o mesmo nível de autoridade. Tornou-se difícil para as pessoas distinguirem qual é qual.

Há um longo caminho para que a desconfiança da mídia "mainstream" se dissolva. Reconstruir a crença das pessoas na verdade será um longo processo, mas ao menos eu sinto que, aqui nos EUA, estamos começando, por causa do fim do governo Trump.

No Brasil, a desinformação continua causando muito dano. Sim, tenho lido sobre isso. Mas o que acontece hoje no Brasil estava acontecendo aqui nos EUA até janeiro. E simplesmente deixou de existir no nível oficial. No mundo não oficial, ela continua. Mas perde força ao não ser parte do discurso oficial. A desinformação, se não é estimulada pelo Estado, acaba se corroendo.

Essa é a razão pela qual eu sinto de que não há volta atrás em direção ao obscurantismo em que estávamos vivendo. Porque quando o culto se fragmenta, não se pode remontá-lo. Quando o culto se revela como fake, não consegue voltar ao pedestal.


RAIO X

Salman Rushdie, 73

Nascido em Mumbai, com raízes familiares muçulmanas, o escritor e ensaísta anglo-indiano é formado em História pelo King's College (Inglaterra) e passou a se dedicar à literatura em 1971. Autor de mais de 12 livros —entre eles "Os Versos Satânicos" (1988), que lhe rendeu uma sentença de morte no Irã, hoje expirada—, é radicado nos EUA há duas décadas e leciona jornalismo na Universidade de Nova York. Seu livro mais recente, "Quichotte", de 2019, será lançado em breve no Brasil pela Companhia das Letras.

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