250 anos de Ludwig van Beethoven: a alegria e a fraternidade romperam as formas e as estruturas

Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 29 Dezembro 2020

Em 1770, as principais revoluções do século XVIII ainda não haviam ocorrido, embora seus ideais já efervesciam. Na cidade de Bonn, onde hoje é a Alemanha, nascia um dos principais expoentes das transformações culturais que a Europa vivenciava: Ludwig van Beethoven. Em 2020, na recordação dos 250 anos do seu nascimento, foram prestadas diversas as homenagens a este que é um dos maiores e mais famosos compositores da história, aquele que consolida a “transição do classicismo ao romantismo”, que é até hoje “imune aos fluxos e refluxos das reputações artísticas”, que foi “tradutor dos sentimentos humanos”, ou então, “um semideus, que combina a figura do Cristo sofredor e um ícone demoníaco”.

Pela celebração dos 250 anos de Beethoven, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU reúne nesta página artigos, entrevistas e vídeos sobre o compositor.

O Teatro la Scalla de Milão, onde outros memoráveis concertos ocorreram, recebeu em 2012 a orquestra de Daniel Baremboin para executar a Nona Sinfonia de Beethoven e, na plateia, os participantes do VII Encontro Mundial de Famílias, dentre os quais, o pianista Joseph Ratzinger, ou, papa Bento XVI.

Ao final da sinfonia, Bento XVI subiu ao palco e discursou: “Não é uma alegria propriamente cristã a que Beethoven canta, é a alegria, porém, da fraterna convivência dos povos, da vitória sobre o egoísmo, e é o desejo de que o caminho da humanidade seja marcado pelo amor, quase como um convite que ele dirige a todos, para além de toda barreira e convicção”.

A ideia da fraternidade evocada no tempo de Beethoven era legada dos ideais iluministas franceses, e também presente na perspectiva do universalismo do Aufklärung alemão. Há poucos meses, o papa Francisco retoma o tema da fraternidade universal publicando uma encíclica sobre o tema. Essa ponte entre os 250 anos de Beethoven é a expressão de um mundo em mudança, que em seu ponto de virada, necessita de liderança de reafirmação dos valores fundantes.

Beethoven foi para muitos de seus biógrafos “um revolucionário musical” conectado ao “espírito da Revolução Francesa”. Para a musicóloga Yara Caznok, “a maneira de [Beethoven] tratar principalmente a forma musical o coloca na história da música como um dos primeiros compositores pré-românticos: os modelos formais clássicos vão sendo expandidos, estilhaçados e, a tal ponto, ‘deformados’, que se questiona se as nomeações das peças a partir de seu arcabouço formal – minuetos, sonatas, codas, por exemplo – ainda são válidas em suas mãos”.

Na entrevista concedida à Revista IHU On-Line Nº 403, Caznok explica que “sua adesão às ideias revolucionárias da época o fez ser o primeiro compositor, na história da música ocidental, a afirmar, por meio de sua obra, que a liberdade, a dignidade e a autonomia do homem – do artista – são valores humanos inegociáveis, que devem ser conquistados, defendidos e valorizados como única forma possível de viver em sociedade. A fraternidade e, um termo hoje muito em moda, a tolerância, eram pressupostos defendidos por ele. Por isso suas obras são consideras definidoras do papel e da função do artista no século XVIII pré-romântico”.

O rompimento com as formas musicais não era apenas uma expressão de uma nova era na música e a superação da cultura clássica, mas um movimento completo, alinhado ao espírito das revoluções políticas e sociais. “Não se tratam mais de obras criadas conforme o gosto da aristocracia, subservientes aos desejos de um patrão. Não são mais um entretenimento refinado, leve e divertido, cuja função era cultivar a convivência de uma sociedade ‘civilizada’, bem-educada, como até então se consideravam as produções de seus predecessores. Sua produção se impôs como retrato de uma personalidade politicamente orientada, que assume uma forma de intervir no mundo com sua música, definida por uma participação ativa em uma sociedade que se constrói a partir de valores éticos e morais, e que reivindica para a arte o status de um conhecimento ideológica e politicamente fundamentado”, explica Caznok.

O pianista e maestro argentino Daniel Barenboim afirmou, como relata Luiz Antonio Araújo, em artigo reproduzido pelo IHU, que “todos somos iguais frente à Quinta de Beethoven”. À época, o maestro tentava junto conseguir do governo alemão patrocínio para levar a orquestra Staatskapelle de Berlim para o Irã, em meio às complicadas negociações do acordo nuclear.

A característica da subversão, da alegria e da fraternidade entre os povos é uma das expressões de Beethoven. No seu caráter pessoal, como descreve Swafford, “áspero, rude e rebelde, em sua música tudo desde o cru ao transcendente, ele se tornou o gênio romântico por excelência em uma época que estabeleceu um culto ao gênio que perdura, para o bem e para o mal”. Saverio Simonelli conta, em artigo publicado em português pelo IHU, sobre a Sinfonia Pastoral orquestrada por Beethoven em Viena, em 1808. A Sinfonia era composta por “algumas árias líricas e peças da Missa em Dó, o Quarto Concerto para piano e orquestra, a Quinta Sinfonia e para concluir a Fantasia Coral”. Depois de uma das mais longas execuções, e de forma perfeita, e com os tons de espanto e subversividade de Beethoven, o maestro parou a orquestra por uma entrada errada dos clarinetes. “E o que ele disse? ‘Chega, vamos recomeçar do início’”.

Beethoven era de família católica, mas de uma cidade e um tempo em que a secularização e os valores iluministas floresciam, portanto não era um frequentador da Igreja. No entanto, sem o apego à religião, ele trazia consigo e em suas obras uma intensa espiritualidade. Conforme Caznok explicou na Audição Comentada da Nona Sinfonia, em evento do IHU, em 2017,  “o que Beethoven fez foi acreditar na capacidade humana. Esta obra não tem uma vivência religiosa, mas uma espiritualidade mística de quem crê na vivência humana. Beethoven, aquele que foi responsável por levar a música instrumental ao máximo, cujos efeitos ainda percebemos em pleno século XXI, foi também o responsável por trazer de volta a sublimação da voz humana em uma sinfonia”.

A única missa composta por Beethoven, entre 1819-23, é uma expressão dessa espiritualidade não seguida ou moldada pelas formas. A Missa Solemnis, descreve Jonas Jorge a partir da audição comentada com Yara Caznok no CEPAT, de Curitiba-PR, "mais que uma mera obra funcional da missa católica, é um grande ato de respeito ao ser humano, às suas capacidades mais profundas. Na teia da música, entrelaça-se o todo da existência humana que, aberta à manifestação de Deus, revigora-se em um ambiente de recolhimento e acolhida da verdade revelada".

Swafford explica no livro "Beethoven: Anguish and Triumph" ("Beethoven: angústia e triunfo", em português, publicado pela editora Print em 2017) que a Missa Solemnis é um fruto do pensamento alemão da época, sobretudo com inspiração kantiana, de afirmação dos imperativos morais e dos valores humanos universais. Segundo o biógrafo, "a obsessão de Beethoven com imperativos morais, com a necessidade de bondade pessoal e o senso de dever férreo que Kant e seu tempo pregavam, foram nessas palavras unificada a Deus em um intercâmbio radiante que se estendia entre a terra e os céus. Essas ideias seriam centrais para a Missa Solemnis em que Beethoven vinha trabalhando há quase um ano, e a ideia exaltada e exaltante da humanidade em pé na terra e erguendo seu olhar para as estrelas seria uma imagem familiar na música ele escreveria pelo resto de sua vida".

O pianista Pascal Amoyel descreve a revolução de Beethoven como o rompimento da forma, da rotina, por uma alegria intrínseca do compositor, mas que está em todos nós. "Essa alegria está em nós. Ela simplesmente é obscurecida por muitos fatores e não a vemos mais. Uma vez que o olhar é libertado dos entraves, a alegria pode ser, não encontrada, mas redescoberta. Em inúmeras ocasiões, rupturas e pausas aparecem na obra de Ludwig van Beethoven. É como se ele quisesse quebrar a rotina. Costuma-se dizer que ele quebrou a sonata, o que é verdade: ele despedaçou essa forma", afirma em entrevista à revista La Vie, e traduzida ao português pelo IHU.

Para o maestro Zubin Mehta, o secularismo de Beethoven não o faz menos importante para as religiões. Em entrevista ao jornal La Reppublica em 2017, traduzida pelo IHU, argumentou sobre o valor de executar a Nona Sinfonia na Catedral de Milão: "Porque essa sinfonia fala de ideais altos e universais: fraternidade, liberdade, solidariedade. Ideais “sagrados” para o ser humano, expressados explicitamente no Ode à Alegria de Schiller, em cujos versos interveio o próprio Beethoven. Uma sacralidade que atinge o seu ápice na Nona e na Missa Solemnis, mas cujo precedente está na Terceira sinfonia Heroica e na ópera Fidelio, ambos trabalhos com uma forte mensagem ética: independência do espírito, emancipação da opressão".

A genialidade de Beethoven se mostrou na ruptura com as formas clássicas e o caráter aristocrático da música à época. Ao longo da vida, mesmo com sua surdez, seguiu transgredindo os limites e continuou suas obras até sua morte em 1827. Foram mais de 130 composições ao longo dos 57 anos. Alguns dos seus legados para a transformação da música podem ser conferidos no artigo de Kyle Macdonald, publicado por Classic FM, e traduzido pelo IHU.

 

Na linha do tempo abaixo apresentamos algumas das obras de Ludwig van Beethoven, este, que como resume Jan Swafford, foi feito pelos românticos um "semideus, uma combinação da figura do Cristo sofredor e um ícone demoníaco. Em sua pessoa áspera, rude e rebelde, em sua música, em tudo, desde o cru ao transcendente, ele se tornou o gênio romântico por excelência, em uma época que estabeleceu um culto ao gênio que perdura, para o bem e para o mal, até hoje".

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