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Como a aliança entre Campos e Marina embaralha o jogo eleitoral

Como a aliança entre Campos e Marina embaralha o jogo eleitoral

Os bastidores da união urdida por Marina Silva – que pode acabar com a polarização entre PT e PSDB

LEANDRO LOYOLA E DIEGO ESCOSTEGUY, COM FLÁVIA TAVARES E MARCELO ROCHA
11/10/2013 - 20h27 - Atualizado 15/07/2014 20h08
Capa - Edição 803 (home) (Foto: ÉPOCA)

Na tarde do primeiro sábado deste mês, no exato dia em que a Constituição da República completava 25 anos de vida, dois políticos adentraram o auditório do Hotel Nacional, em Brasília, para anunciar a mais espetacular e improvável aliança eleitoral desde a redemocratização do Brasil. Marina Silva, exibindo ao país toda a força política de sua frágil figura num tailleur preto, entrava no auditório com 20 milhões de votos, 500 mil assinaturas para o partido que tentava criar e um carisma ainda impossível de medir em números. Eduardo Campos, vestindo camisa social branca e calça jeans, não entrava apenas com o frescor de sua juventude e a simpatia de seus olhos verdes. Levava também um partido, tempo de TV, dinheiro, marqueteiros, palanques regionais e, sobretudo, uma candidatura presidencial ambiciosa, ainda que neste momento empacada nas pesquisas, construída minuciosamente para derrotar o PT de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff nas eleições que se aproximam. Separados, os dois pareciam não ter chances reais de chegar ao Planalto. Juntos, podiam sonhar.

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Marina se sentia claramente vítima do partido que a acolhera por quase três décadas. Atribuía ao governo do PT o fato de, dois dias antes, não ter conseguido o registro eleitoral para o partido Rede Sustentabilidade. Isso a obrigava a se filiar a outro partido, caso quisesse disputar as eleições de 2014. “Não estamos pensando o processo político se resumindo a eleições, ainda que elas sejam muito importantes. Estamos iniciando um processo de governabilidade programática, em vez de uma governabilidade pragmática, que privatiza pedaços do Estado para partidos. Estamos iniciando um processo para fazer um realinhamento histórico e sepultar a Velha República!” A claque que lotava o auditório irrompeu em aplausos e assovios. Algo mudara em Marina. Ela falava com a indignação que só a raiva dá. Nas palavras e no semblante, havia uma determinação que não se vira nas eleições de 2010. Campos podia ser o candidato, mas era ela a estrela.
 

UNIÃO Eduardo Campos e Marina Silva em São Paulo na quinta-feira, dia 10. A aliança foi ideia dela (Foto: NaLata)

Em seguida, falou Campos, anunciado como “futuro presidente da República”. “Nossa inquietação com tudo isso que está aí nos moveu. Aqui estamos porque o Brasil espera de nós uma atitude que vá além do olhar eleitoral”, disse ele sobre uma aliança que nasceu, bem, por causa das eleições de 2014. O Brasil assistia ao vivo. O auditório do Hotel Nacional transformara-se no palanque que dava início à imprevisível campanha presidencial de 2014, precipitada pela pragmática união de dois políticos que sonham em derrotar o governo. Se agora era vilipendiado por ambos, num passado não tão distante, ainda nos tempos da Velha República, no dizer de Marina, albergava-lhes confortavelmente. Nascia, portanto, um bicho político inclassificável. Mas que, se vingar, mudará o jogo eleitoral no país, impedindo, pela primeira vez em cinco eleições presidenciais, a disputa bipolar entre PT e PSDB.

O bicho nasceu inteiramente da cabeça de Marina, ainda sob o calor da derrota da Rede no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), na quinta-feira anterior à apoteose política no Hotel Nacional. Era tarde da noite quando ela, acompanhada de aliados, deixou a sede do TSE e se encaminhou para o apartamento de uma amiga, onde cerca de 40 colegas da Rede a esperavam. Alguns choravam. O clima era de desânimo e derrota. Sem o registro da Rede, Marina e seus aliados perdiam a plataforma que haviam construído para a campanha de 2014. O que fazer? Era quase meia-noite quando Marina, já com a ideia de se aliar a Eduardo Campos fervilhando na cabeça, estimulou o início de um debate para decidir o destino dela e da Rede. Restavam menos de 48 horas para o encerramento do prazo de filiações. Qualquer decisão teria de ser tomada rapidamente.

Às 3 horas da manhã, Marina pediu que todos saíssem e ficassem apenas o deputado Walter Feldman e os integrantes da direção executiva da Rede, além de seu marido e suas filhas. Entre poucos, Marina falou. “O objetivo não é ser candidata a presidente. É ajudar o Brasil. O alfabeto tem mais letras do que A e B”, disse, em referência à possibilidade de ingressar no PPS, partido que, àquela altura, entre os tantos que se ofereciam para recebê-la, parecia a escolha mais sensata, noves fora a incoerência intrínseca a qualquer filiação. Marina então surpreendeu. “Walter, articula com o Eduardo Campos”, disse. Eram 6 horas da manhã de sexta-feira. Às 9, Feldman disse ao presidente do PSB de São Paulo, Márcio França, e ao líder do PSB na Câmara, deputado Beto Albuquerque, que Marina queria conversar com Campos. Não se falou sobre o objeto da conversa. Nem precisava. Às 11 horas, em sua casa no Lago Sul, Marina recebeu uma ligação do senador Rodrigo Rollemberg, do PSB, o parlamentar mais próximo de Campos. “Marina, estamos tristes. Eu queria que você me autorizasse a fazer algumas gestões”, disse Rollemberg, pedindo para botar de pé o bicho.

Rollemberg e Feldman almoçaram juntos e passaram a dar os telefonemas necessários. Naquele momento, políticos próximos aos dois presidenciáveis estavam empolgados com a ideia: Marina entrava com o carisma, e Campos, com o aparato político. O recado transmitido por Feldman era claro: Marina decidira que sua melhor opção era aderir ao PSB, por Campos ser a alternativa à polarização PT-PSDB na eleição. “Eduardo, você precisa vir urgente para Brasília”, disse Rollemberg a Campos, ao telefone. “Eles estão aqui para dizer que a Marina quer vir para o PSB.” “Mas é assim mesmo?”, disse Campos, entre surpreso e animado. A fortuna, como o filósofo florentino Nicolau Maquiavel definia a sorte na política, sorria largamente a Campos. Estagnado nas pesquisas, ele teria, com Marina, a chance de virar o jogo. 

A fortuna, claro, não era tão fortuita assim. Campos fizera sua parte, ao usar toda sua virtù, ou sua astúcia – outra expressão de Maquiavel, pai da política moderna por ser, precisamente, o pai do pensamento político pragmático. Para Maquiavel, virtù e fortuna são os dois elementos que, quando combinados, produzem os grandes políticos. Com aquele telefonema, Campos se tornava finalmente gente grande na política brasileira. Tivera virtù, ao apoiar o partido de Marina desde o começo do ano. Fez isso na luta jurídica para derrubar no Supremo, em abril, o projeto de lei patrocinado pelo governo que, se aprovado no Congresso, impediria a criação de partidos como a Rede. E fez também em amistosas conversas periódicas com políticos da Rede. O cálculo de Campos era simples. Se Marina fosse candidata, seria uma candidata ao menos simpática a ele – e talvez ajudasse a forçar um segundo turno com Dilma, com quem ele, naturalmente, esperava disputar. Campos sabia que a Rede, desorganizada em sua coleta de assinaturas, poderia não conseguir o registro eleitoral a tempo. E a fortuna poderia lhe trazer um telefonema como aquele de Feldman.

“Vou mudar toda a minha agenda e vou para Brasília”, disse Campos. Era só uma questão de tempo. Ele chegou a Brasília no começo da noite e foi levado por Rollemberg ao local combinado, o apartamento de uma amiga de Feldman. Tudo discretamente. O quarto de um dos filhos da anfitriã foi improvisado para que Sérgio Xavier, Bazileu Margarido e Pedro Ivo – a cúpula da Rede – esperassem, enquanto Marina, Campos, Feldman e Rollemberg conversavam na sala. Marina propôs uma “filiação democrática” ao PSB. “Nós, da Rede, reconhecemos que você é o candidato posto”, disse Marina. “Se tudo der certo, faremos um programa de governo juntos.” Campos ficou quase dois minutos em silêncio. Finalmente, passou a mão nos cabelos, bateu na perna e disse: “Vamos fazer. Eu preciso de poucas horas para consultar três pessoas que não quero deixar de consultar. Mas vamos fazer”. Marina chamou os colegas que estavam no quarto e comunicou sua decisão. A pedido de Campos, o senador Rollemberg pegou um papel e anotou os pontos da adesão de Marina ao PSB: “coligação programática”, “reconhecimento da Rede” e “filiação democrática”. Houve uma curta conversa sobre as alianças estaduais. Campos pediu a Rollemberg que anotasse também os pontos do futuro programa de campanha, para citar quando os dois anunciassem a aliança publicamente: “manter e avançar nas conquistas”, “democratizar a democracia” e “desenvolvimento sustentável”. 

O que Campos agrega a Marina – e o que Marina agrega a Campos (Foto: Na Lata e Adriano Machado/Ed. Globo)

“Walter, agora vamos falar com os militantes”, disse Marina. Já exausta, ela voltou para casa. Lá estavam, à sua espera, os deputados Miro Teixeira, Reguffe e militantes da Rede. Estava à sua espera, com eles, o difícil confronto com sua coerência: Marina sempre garantiu que a criação da Rede não se devia às eleições presidenciais, que não se comportaria como uma política tradicional. Como explicar uma decisão soberana sua, num grupo marcado pelo que seus integrantes chamam de “horizontalidade”, uma decisão que tinha implicações para todos, mas fora tomada apenas por ela, uma decisão que, para todos, parecia o mais fiel retrato do pragmatismo político? Marina, de pronto, pediu que todos desligassem seus telefones celulares para começar a falar. “Temos seis convites para que eu seja candidata, mas acho que isso será uma manifestação eleitoral de minha parte”, disse. “Eu poderia optar por ser a pessoa alijada do processo por uma decisão injusta. Talvez tivesse o elogio dos adversários.” Então, Marina anunciou: “Procurei o governador Eduardo Campos. Penso que devemos apoiar Eduardo Campos. Atuaremos como coligação. Ele sabe que eu sou Rede”. Surpreendidos, os seguidores mais jovens de Marina protagonizaram uma catarse. As militantes Iara Vicente e Marcela Moraes choraram. Alguns falaram que ela era a candidata e que não fazia sentido apoiar Campos – visto como representante da “velha prática da política brasileira” e como fonte de desgaste político a Marina. “Esse é o mal menor”, disse Marina. Em seguida, Marina falou em “chavismo” do governo, ao tentar impedir sua candidatura, e que o PT financiava “com dinheiro público 2 mil pessoas” para difamá-la nas redes sociais. O ressentimento de Marina pelo PT tomava corpo rapidamente. A decisão, tomada pelos dois pragmáticos que dizem sonhar, estava imposta.

Todos estavam surpresos com o bicho. A trajetória política de Eduardo e Marina, e as escolhas que eles fizeram nesse percurso, os conduzira para esse momento. O pragmatismo das horas que antecederam o ato no Hotel Nacional sempre existiu nos dois. Neto de Miguel Arraes, Campos aprendeu a fazer política em Pernambuco do modo mais tradicional possível, por isso subiu rápido. Apoiou o mui tradicional Garotinho nas eleições presidenciais de 2002, virou ministro do governo Lula e, quando sobreveio o mensalão, em 2005, deixou o cargo e voltou para a Câmara, de onde ajudou Lula a sobreviver àquela tempestade política. Garantiu que o PSB não assinasse a CPI que investigou o escândalo. Foi leal, com isso Lula o ajudou a conquistar o governo de Pernambuco. Foi com a ajuda de Lula, também, que Campos conseguiu fazer o que se reputa uma boa administração: recebeu imensas verbas federais e projetos grandiosos, como o Porto de Suape. Foi com a ajuda de Lula, ainda, que conseguiu indicar a mãe, Ana Arraes, para o cargo de ministra do Tribunal de Contas da União. Como político tradicional, foi acusado de nepotismo no governo de Pernambuco e auxiliares seus foram condenados por desvio de dinheiro público.

Marina também já foi acusada de nepotismo. Enquanto era ministra do Meio Ambiente e permanecia no cargo, perdia mais batalhas dentro do governo do que ganhava. Seu marido era empregado no gabinete de seu suplente no Senado, o petista Sibá Machado. O pragmatismo de Marina, no entanto, forjou-se quando ela decidiu deixar o PT, após duas décadas de militância, desde os tempos de Chico Mendes, no Acre. Convencida de que merecia ser candidata a presidente, mas não teria chances contra Dilma, a favorita de Lula, Marina deixou o governo em 2008, voltou ao Senado e passou a sondar outros partidos. Foi procurada por um dos filhos do senador José Sarney. Sarney Filho, do PV, lhe ofereceu a plataforma mais vantajosa para concorrer em 2010. Apresentou sua desfiliação do PT em agosto de 2009, quando afirmou: “Saí do PT para poder ficar livre para negociar com outro partido. Não ficaria bem negociar com um partido estando em outro”. Não era bem assim. “Estávamos negociando com o PV havia mais de um mês, já tínhamos até esboçado um texto sobre as mudanças que gostaríamos de ver no partido”, diz Luciano Zica, um dos mais antigos aliados de Marina. Ele participou daquelas negociações e se manteve fiel a ela até a semana passada, quando, apesar de integrar a Rede e tentar convencer os outros de que Marina “seria coerente”, nem sequer foi comunicado da aliança com Campos. Zica, como tantos outros que confiaram na coerência de Marina ao longo de suas mudanças do PT para o PV, do PV para a Rede, e da Rede para o PSB, finalmente desistiu dela.

As hesitações de Marina, que parece oscilar constantemente entre diferentes cursos de ação, aliadas a sua fraseologia política, que beira o incompreensível, fazem do bicho que nasce um enigma. De tão difícil de entender o que ela diz, e o que Campos tenta dizer na esteira dela, apelidou-se o bicho, nas redes sociais, de chapa Floquinho – uma homenagem ao peludo cachorro do Cebolinha, da Turma da Mônica, cujo rabo e cuja cabeça ninguém sabe identificar onde ficam. A pelugem bonita impressiona – mas ninguém entendeu os primeiros latidos do bicho. Não há dúvida de que Campos será candidato, mas o bicho não consegue latir isso. No que, afinal, consistirá a tal “aliança programática”? O bicho não diz. E é difícil entender sem ele dizer. Até o anúncio da aliança, Campos não pronunciara em seus programas de TV e entrevistas a palavra “sustentabilidade”. De tão importante para a Rede de Marina, ela estava no nome do partido.

Seja lá o que possa oferecer de diferente ao país, o bicho mexe profundamente com o quadro eleitoral de 2014. Ainda é cedo para saber o impacto da aliança nas eleições, e quantos dos muitos eleitores de Marina aderirão à chapa Floquinho. Esse elemento de imprevisibilidade mudou a estratégia dos outros candidatos – e o tamanho também. Aécio Neves, do PSDB, ficou subitamente menor. Dilma, na garupa de seu formidável aparato de propaganda e dos baixos índices de desemprego, segue favorita para garantir a reeleição, talvez até no primeiro turno. Mas os estrategistas do Planalto estão preocupados. Apelidaram Marina de “Suplicy da floresta”. Acreditam que a transferência de votos de Marina para Campos deve demorar, de modo que a ordem é “começar a bater” desde já, para sufocar o crescimento da dupla. O marqueteiro João Santana já começou a fazer pesquisas qualitativas com eleitores de Marina. Por enquanto, está claro que os eleitores simpáticos a Marina conhecem pouco Campos. Eleitores de Marina no Rio de Janeiro não sabem que Campos foi um dos líderes do movimento para levar mais dinheiro público dos royalties do petróleo para o Nordeste, que resultou na perda de royalties pelo Rio. Com casos como esse, o governo tentará mostrar o que auxiliares de Dilma consideram ser contradições entre as crenças dos eleitores de Marina e a prática de Campos. Os resultados determinarão a estratégia a usar contra Campos e Marina. Já está decidido que Dilma fará mais viagens ao Nordeste, principal base de Campos, para divulgar seu governo. Tudo para que Floquinho não morda.

Uma largada bem atrás dos adversários (Foto: Alan Marques/Folhapress, Eugenio Savio/Ed. Globo e Paulo Giandalia/Estadão Conteúdo)

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12/10/2013 - Edição 803

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