Cultura

Jean Boghici: luto pela perda de obras de arte em Copacabana

Marchand fala do incêndio que destruiu coleção e do passado de retirante na Europa

Boghici posa em sua galeria, em Ipanema, dias após a tragédia que mobilizou o mundo das artes: compromissos burocráticos e vontade de seguir com a vida
Foto: Simone Marinho
Boghici posa em sua galeria, em Ipanema, dias após a tragédia que mobilizou o mundo das artes: compromissos burocráticos e vontade de seguir com a vida Foto: Simone Marinho

RIO - Dois dias após o incêndio que consumiu parcialmente sua cobertura em Copacabana, destruindo preciosas obras de arte, o marchand Jean Boghici, 84 anos, enfrentava uma via-crúcis de compromissos burocráticos relativos ao incidente. O que mais o entristecia, porém, era a perda de dois dos 12 gatos que viviam no apartamento e o fato de não ter podido ir ao enterro dos bichanos, na manhã seguinte.

— A primeira coisa que minha mulher fez foi tentar salvar os animais. Foi uma atitude muito humana, muito bonita — elogia. — Infelizmente, algumas coisas se perderam.

Aqueles que tiveram o privilégio de conhecer o apartamento compreendem a dimensão do episódio. A explosão de cores que saltava das paredes, cobertas por quadros de cima a baixo, desnorteava o visitante de primeira viagem. Fulguravam ali telas de Di Cavalcanti, Volpi, Cícero Dias, Segall, um dos maiores acervos de Debret do mundo, além de esculturas de Calder e Krajcberg e uma vasta coleção de artistas soviéticos. Parte dos móveis era assinada pelo designer português Joaquim Tenreiro. Mais do que obras de arte, muito do que estava ali eram lembranças de artistas com quem Boghici conviveu.

— Ele vivia num aquário de quadros. Sua vida é habitada por obras, e as obras são habitadas por ele — resume o marchand Leonel Kaz, um dos curadores da exposição inaugural do Museu de Arte do Rio, em novembro, com um andar inteiro dedicado à coleção de Boghici.

A chegada clandestina ao Brasil

Nascido às margens do Rio Danúbio, na Romênia, Jean Boghici chegou ao Brasil clandestino em um navio francês, em 1948. O Rio foi o destino final de uma aventura que começou anos antes, em Bucareste, quando Boghici largou a faculdade de Engenharia para acompanhar um grupo de amigos judeus em fuga.

— Sempre gostei de eletrônica e construí um rádio de ondas curtas. Um dia, sintonizei Churchill dizendo que uma cortina de ferro soviética cairia sobre o meu país. Achei melhor fugir dali — lembra.

Partiram a pé em direção à Hungria, atravessando regiões devastadas pela guerra, escondendo-se de patrulhas russas. A cena de uma carroça cheia de corpos empilhados nunca o abandonou. Depois de meses de travessia, chegaram à Áustria. Ali, ele passaria dias entre a vida e a morte por conta de uma infecção dentária. Recuperado, trabalhou em uma mina de carvão, antes de se estabelecer, novamente como estudante, em Paris, onde trocou a eletrônica pelo encanto das artes plásticas:

— O exílio me levou a um contato profundo com a arte. Conheci grandes artistas e virei um flâneur . Mas nem sonhava em viver disso.

Em Paris, Boghici tornou-se amigo do escritor americano James Baldwin, que planejava vir ao Brasil estudar negritude. Baldwin acabaria desistindo da viagem minutos antes do embarque. Seduzidos pela aventura, Boghici e o amigo Henri Stahl pularam para o navio e se esconderam no barco salva-vidas. Só deixaram o esconderijo quando o calor da costa africana fez com que os passageiros se misturassem no convés. Ao chegarem ao Brasil, sem passaporte ou dinheiro, dormiram na areia da Praia de Copacabana.

Sem visto, Boghici foi morar em Belo Horizonte, onde conheceu Guignard, autor de “Floresta tropical”, uma das preciosidades de sua coleção perdidas no incêndio. De volta ao Rio, trabalhou como vitrinista e iluminador na boate Vogue. Um dia, tomava cerveja no Bar Gôndola, antigo reduto de artistas no Arpoador, quando foi abordado por um produtor da TV Tupi.

— Eu havia sofrido um acidente de moto e estava de muleta, mal cuidado, barbudo. Acho que por isso o cara me achou parecido com o Kirk Douglas interpretando Van Gogh em “Sede de viver” — conta.

A semelhança rendeu a Boghici uma chance de participar do programa “O céu é o limite”, de J. Silvestre, no qual respondia a perguntas sobre o pintor holandês, que continua sendo seu grande ídolo. Foram quatro meses de celebridade ao lado de especialistas em Cleópatra, Chaplin e Hemingway. Por um bom tempo, pessoas o chamavam de Van Gogh nas ruas.

— Foi uma grande sorte. Com o dinheiro ganho, deu para comprar um apartamento, um carro e pagar as dívidas — reconhece.

A fama na TV o levou a ser convocado por uma fundação cultural para procurar tesouros da arte popular no Nordeste. Partiu de jipe em direção ao Brasil profundo, salvaguardado por uma carta do presidente Jânio Quadros: “Recomendo às autoridades darem todo apoio ao Sr. Jean Boghici.” Durante os meses de viagem, conheceu figuras como Mestre Vitalino e o folclorista Câmara Cascudo. Em 1960, Boghici abriu sua primeira galeria, a lendária Relevo, com uma exposição do também romeno Emeric Marcier. Ali o marchand iniciaria o seu longo processo de garimpo à procura de trabalhos esquecidos de artistas modernistas. Por preços ínfimos, arrematou várias obras importantes de Tarsila, Portinari, Guignard e Volpi, além da tela “Samba”, de Di Cavalcanti. Vedete da coleção, o quadro foi destruído pelo incêndio. Avaliada em R$ 50 milhões, a tela era, para alguns críticos, a obra-prima do modernismo brasileiro:

— Estava comigo há mais de 50 anos. Claro que é um belo quadro com todos os predicados, bem brasileiro, mas tem outros muito bons que não desfrutam de tanta fama — pondera.

Para Jones Bergamin, marchand da Bolsa de Artes do Rio e amigo de Boghici, a perda de “Samba” cria uma lacuna imensa em nossa arte:

— Era o quadro que melhor representava o povo brasileiro, muito mais direto e expressivo do que o “Abaporu” ( de Tarsila ). Mas o Jean é um homem muito forte, que passou por situações muito mais adversas, como a proximidade da guerra. Acho que ele vai superar essas perdas logo.

Como curador, Boghici dedicou-se a lançar novos nomes. Na mostra “Opinião 65”, revelou artistas neofigurativos como Antonio Dias, Rubens Gerchman, Carlos Vergara e Wesley Duke Lee. Tornou-se amigo de todos eles. Vergara acredita que a mostra foi um marco para uma geração que despontava nos anos 1960.

— O Boghici foi um visionário, fundamental naquele momento. Ele acreditou em artistas que estavam na vanguarda, na contramão — afirma Vergara. — Além disso, ele é um desenhista incrível.

Em 1978, o primeiro incêndio

Também na década de 1960, Boghici viveu um romance de seis anos com Lygia Clark, com quem colaborou:

— Quando era jovem, construía planadores. Usei essa habilidade para desenvolver, com aros de bicicleta, as dobradiças da série “Bichos” de Lygia.

Em 1978, outro incêndio trágico marcou sua vida, quando o Museu de Arte Moderna pegou fogo, durante uma grande exposição dedicada à obra de Joaquín Torres García. Organizador da mostra, concretização de um antigo sonho, o marchand viu algumas telas preciosas do pintor uruguaio se perderem.

Após o incêndio da última segunda-feira, Boghici instalou-se temporariamente com a mulher, Geneviève Coll, e a filha, Sabine, uma das maiores colecionadoras de brinquedos do país, em uma cobertura vizinha à que pegou fogo. É o apartamento comprado com a renda que ganhou com Van Gogh na televisão.

Funcionários da seguradora ainda estão avaliando os danos. Aparentemente, 90% do acervo do marchand se salvou das chamas. Algumas das peças já foram enviadas para a restauração. Boghici tem recebido, por telefone, a solidariedade de críticos, colecionadores e artistas do mundo todo. Apesar da ausência da gata Pretinha, que dormia em sua cama todas as noites, ele afirma que não pode se dar ao luxo de ficar deprimido.

— Lamento o que aconteceu, mas saí fortalecido para lutar contra o cruel destino — afirma. —No momento, estou na minha casa temporária, tomando um uísque, porque não sou de ferro, e observando a sensacional coleção de livros que tenho aqui.