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07/04/2010

Eliane Cantanhêde - Quem quer estabilidade vá para o serviço público

Arquivo Pessoal
Eliane Cantanhêde" (de preto) com Redação da "Veja", em Brasília, em 1976, pouco antes do acidente que vitimou JK.
Eliane Cantanhêde" (de preto) com Redação da "Veja", em Brasília, em 1976, pouco antes do acidente que vitimou JK.

Complemento ao livro A Vaga é Sua
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Você foi do tipo que achou emprego fácil? Ou camelou um pouco no começo?

Tive uma história muito peculiar. Éramos selecionados por estágio e as universidades indicavam os formandos para estágios de três meses. Aquilo era disputadíssimo a tapa.

No ano tal, o indicado não pôde ir, porque era casado, a mulher estava grávida e ele não podia abandonar seu trabalho na CEF. Aí o professor, em vez de mandar um formando, mandou aqui a jovem criatura, que estava no terceiro semestre.

Outra coisa insólita: fiquei mais três meses além dos três iniciais. E outra ainda: ao final dos seis meses, virei jornalista profissional, estando ainda no segundo ou terceiro ano da faculdade.

E por que você acha que aconteceu isso?

Porque eu era boa aluna e escrevia muito bem.

Boa aluna quer dizer o quê?

Tinha bom texto, era superinteressada, gostava de ler, lia tudo quanto era jornal, estava antenada, era curiosa, era chata.

Era muito abelhuda.

Quando fui fazer estágio no JB, que era o mais disputado, me deram pra fazer o MEC, que tem nove andares. Eu ficava tão ansiosa de saber tudo que andava de escada pra cima e pra baixo, decorei todos os telefones dos departamentos importantes.

Você sempre quis ser jornalista?

Aos 14 anos de idade, estava almoçando com meu pai, minha mãe e meu irmão e disse: "Já decidi o que vou ser. Jornalista". Todo mundo se olhou e disse "De onde vc tirou isso?" Não tinha nenhuma referência na família, não estava me espelhando em ninguém. Respondi: "Simples, gosto de ler, de escrever, viajar, conhecer.".

Você já lia jornal?

Lia "O Globo". Comecei lendo histórias em quadrinho, todos os dias. A partir disso, fui lendo, e gostava daquilo, tinha uma fantasia na minha cabeça que não ficou muito longe da realidade, vou ter que confessar: que eu ia viajar pelo mundo, ia estar sempre conhecendo coisas, aprendendo coisas, que é mais ou menos o que a gente faz ao longo da vida.

Você não achou que começar tão cedo te prejudicou de alguma forma?

Sim. Hoje, eu babo de inveja quando vejo a Folha oferecendo tantos cursos pra garotada. A garotada hoje pode estudar fora, estudar línguas, tem cursos, palestras.

O que aconteceu comigo: eu usei o jornalismo como meu mestrado e meu doutorado. Com um ano de JB fui para a Veja -e veja que curioso, fui ganhar mais do que o dobro que meu amigo que não pode largar o emprego na CEF.

É uma coisa que digo para jovens jornalistas sempre: jornalista tem que ser ousado. A gente tem uma postura na vida que é de vanguarda e de ousadia. Ele abdicou dessa chance e em um ano estava ganhando mais que o dobro dele.

Mas, voltando ao estudo: uma vez me deram uma nota da seção Gente, que tinha dez linhas, com uma antropóloga, Maria Beltrão, mulher do então ministro Helio Beltrão. O que eu fiz? Fiquei três aulas com a mulher, tive uma superaula, escrevi 12 laudas pra fazer cinco, seis linhas.

Naquele tempo não tinha internet, coisa nenhuma, então eu usava muito a biblioteca do Senado, da Câmara, da UnB, o banco de dados da própria Veja. E como em revista a gente tem uma semana pra fazer matéria, tudo era motivo pra aprender. Eu queria aprender tudo.

Então você fez uma espécie de programa pessoal de estudos? Era algo deliberado? Ou resultado das reportagens?

Era resultado das reportagens, mas eu aproveitava muito cada chance da reportagem pra não me limitar ao que tinha que entregar no dia seguinte.

Quer ver outra coisa curiosa: na minha época ninguém falava língua nenhuma, porque ninguém saía do Brasil. E eu já tinha feito intercâmbio, aos 15, 16 anos, fui uma precursora de intercâmbio. Era a única que falava inglês em vários lugares que trabalhei.

Foi ideia sua?

Não. Um pouco, sim, porque já estudava inglês, mas foi da minha mãe, que sempre foi meio maluquete.

Você sempre soube que queria cobrir política? Fazia várias coisas no começo ou queria logo se especializar?

Nunca quis me especializar em coisa nenhuma. Pelo contrário, quando achava que estava boa numa área, já estava cansada, pulando pra outra. Minha mãe dizia que eu não ia casar, porque era muito inconstante, mas já sou casada há 30 anos (risos).

Comecei cobrindo educação, depois fui para uma área que ninguém queria: militares, em plena ditadura. Mas não me contentava em ir para o cercadinho ficar anotando discurso. Consegui penetração, conhecer gente da área militar, os assuntos, que me é útil até hoje.

Depois fui me interessando por política externa, saúde, área social, religião. Fiz reportagens sobre como a igreja trabalha no interior, crise de índios no sul do Pará, garimpo -eu era a única mulher entre 3.000 homens trabalhando de cueca.

A política só veio aparecer na minha vida muito tempo depois, porque descobri que tudo era política.

Foi um processo em que vim de fora pra dentro. Os jornalistas querem começar de dentro do Congresso, dentro da política. Eu acho que chegar na política é depois de você ter ralado muito fora. Tem que ser o processo inverso.

Nas vezes em que te foi oferecido mudar de empresa ou de função, que sensação teve? Ficou em dúvida? Teme arriscar? Nunca teve medo de arriscar? Recusou propostas? Como é que é mudar de emprego ou função pra você?

É engraçado, porque apesar de toda a ousadia, o impulso pelo novo, pela descoberta, sou muito conservadora na hora de mudar de emprego. Mudei muito de emprego pelas circunstâncias. Já fui de todos os jornais (OESP,. Folha, JB, Globo, Gazeta Mercantil), fui da Veja, da TV Cultura, do SBT.

Tenho certa dificuldade de mudar de emprego

Imagina se não tivesse, então....

Pois é. Mas fui durante muitos anos recordista de permanência na Veja. Fiquei oito anos.

Porque você recusou propostas?

Sim. Sempre tive muitas propostas.

Posso contar uma coisa sem modéstia nenhuma? Um lugar muito difícil pra mim foi o Globo. Era uma função estratégica, diretora da sucursal de Brasília, vindo do JB, que era concorrente. Fui chefiar quem competia comigo, num momento de muita ebulição de trocas de chefias, e sem conhecer os códigos de convivência do Globo.

Fui demitida, um ano depois.

Na semana em que fui demitida, tive cinco convites de emprego.

Antes do primeiro convite, vc teve medo? Achou grave ter sido demitida ou imaginou que tudo se resolveria rapidamente?

É o que eu digo: quem quer estabilidade vai pro serviço público. Em jornalismo não existe estabilidade.

Essa não foi a única vez em que fui demitida. Fui demitida duas vezes, e já demiti muita gente. É muito mais doloroso demitir. Ser demitida mexe muito com seu ego, com a auto-estima, mas eu era compensada muito rapidamente.

Houve uma época em que larguei tudo. Na época do Collor, estava em Nova York cobrindo e vi que não dava pra mim, não queria cobrir Collor correndo no Central Park, ele e Zélia andando de charrete.

Eu e meu marido largamos tudo e fomos passar um ano na Europa de mochileiros, quase, com as duas crianças, com 10 e 12 anos. Tiramos as crianças da escola, pra desespero dos pais e dos avós, largamos os bons empregos que tínhamos (meu marido era diretor da Globo e saiu na época do Collor). Vendemos os carros, pegamos fundo de garantia e fomos passar um ano na Europa até acabar o dinheiro, e aí voltamos. Sem emprego, sem nada. Lá fizemos curso intensivo de italiano, de francês. A gente não podia gastar. Ia ao supermercado, comprava quatro bifes, quatro bananas, quatro iogurtes.

Naquela época não tinha internet, telefone era caríssimo, só falei com o Brasil uma vez por telefone. Acredita que no dia em que botei os pés no Brasil tive dois convites, os dois tops, do Globo e do Estadão.

Esses dois convites foram por causa da sua vida pregressa, certo? Ou o fato de você ter passado um ano fora tem influencia nisso?

Pelo contrário. Não tinha nenhum valor, valor zero. Era tudo pela bagagem, pela credibilidade de antes.

E no começo, ou mesmo depois, houve alguém que já era jornalista e te ajudou de alguma forma, que foi uma espécie de mentor?

Tinha uma paixão muito especial pelo diretor da Veja que foi meu grande professor, Pompeu de Souza, um dos mestres do novo jornalismo brasileiro. Ele já era um velhinho e eu aprendi muito com ele, ele dava bronca, ensinava, cobrava, elogiava, foi uma época de muito aprendizado.

O Pompeu foi um marco. Há muita gente importante na minha carreira como referência, mas vou ficar só com o Pompeu pra não esquecer os outros.

Nos meus três últimos empregos eu era a mais velha, e todos me achavam A cheia de gás. Tenho paixão, vontade e garra. Jornalista que não tem paixão, garra e vontade não adianta.

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