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Eles sobreviveram ao inferno da boate Kiss

Testemunhas relatam ao site de VEJA os minutos de pânico dentro da caixa de concreto repleta de fumaça tóxica. Bombeiro que iniciou o resgate teve dificuldade de localizar os vivos entre as pilhas de corpos

Por Leslie Leitão, Marcelo Sperandio e André Eler, de Santa Maria
2 fev 2013, 06h46

O relógio marcava 3h17 do dia 27 de janeiro de 2013 quando Elissandro Spohr, 28 anos, o Kiko, escapou pelo portão de ferro da boate Kiss, ganhando a Rua dos Andradas. Conhecido playboy de Santa Maria, cidade a 300 quilômetros de Porto Alegre, Kiko estendeu a mão e puxou para a calçada três meninas que se espremiam entre centenas de outras pessoas em desespero, acotovelando-se para fugir do inferno de fumaça e chamas em que se transformou a casa noturna. Filho do dono de uma cadeia de revenda de pneus com filiais pelo Brasil, Kiko era amparado por um segurança, que o conduzia sempre com uma das mãos nas costas. De camisa branca e calça jeans escura, chorava e berrava: “Minha boate, minha casa! Perdi tudo”.

A fumaça tomava conta dos 615 metros quadrados da casa noturna que era ponto de encontro na cidade repleta de universitários. O desespero, até ali, era não pela contagem de corpos que já ia perto de 40 vítimas, mas pela destruição da Kiss. Nem ele nem os frequentadores pareciam ter, naquele momento, a noção de que a catástrofe em curso era produto de uma sucessão de desmandos e erros dos donos da boate e dos poderes públicos. Uma tragédia que, em minutos, consumiu a vida de mais de 230 jovens, quase todos recém-saídos da adolescência.

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A espuma barata, inapropriada para isolamento acústico de locais fechados e com grande concentração de público, em contato com os fogos de artifício – também inadequados para recintos fechados e sem autorização para uso na casa noturna – produziu a fumaça tóxica que fez da boate Kiss uma espécie de câmara de gás.

Com os corpos ainda sendo retirados e algumas pessoas na agonia dos últimos momentos de vida, Kiko ficou murmurando durante alguns minutos próximo ao estacionamento do Carrefour, em frente à boate, antes de deixar o local. A fila de corpos crescia. Gritos, correria desesperada em busca de ajuda, pedidos de socorro.

O resgate atabalhoado fazia com que algumas pessoas – os de maior sorte – fossem cuspidos pela porta ou pelo buraco aberto na parede frontal. “Eu me joguei por cima das pessoas e fiquei ali caída por alguns minutos. Só depois vi minha amiga sendo arremessada, voando por cima de mim”, conta a estudante de Farmácia Carolina Quintana, de 19 anos. Cliente VIP da Kiss, ela batia ponto na casa todos os fins de semana, às vezes mais de uma vez. O segundo show da noite já havia começado quando ela e a amiga foram ao banheiro nos fundos da boate. Viram, então, um jovem gritando “fogo”. “Bati na porta, minha amiga não respondia. O menino me mandou ir embora e eu fui. Não senti cheiro, nada. Quando saí do banheiro só vi fumaça, mas como eu conhecia bem o lugar, fui andando para frente. Uma multidão horrorosa se amontoava, as cadeiras jogadas no chão. Fui passando por cima das pessoas que começavam a tombar, até chegar à rua”, lembra Carolina.

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Danielli Zocollotto festejava seu 20º aniversário com as melhores amigas. Ela e a prima Jéssica estavam numa mesa reservada no mezanino VIP de frente para o palco. Chegaram por volta de 1h. Beberam uma série de drinks de vodca com água tônica. Exatamente às 3h03, atravessaram a boate para um ‘shot’ de tequila. O momento ficou registrado numa tremida foto de celular. Dali, foram direto para o banheiro lateral, próximo à saída. Jéssica estava passando mal e precisava vomitar. Recuperada, voltaram para seu posto privilegiado na pista. “Alto em cima, alto em cima, alto em cima”, cantavam. Foi durante os primeiros versos de Amor do Chocolate, sucesso do funkeiro carioca Naldo, que o vocalista da banda Gurizada Fandangueira iniciou seu catastrófico show pirotécnico. Com uma luva na mão esquerda e um canudo chamado ‘Chuva de Prata’ acoplado, a chuva de faíscas começou. E logo atingiu o teto de isopor e espuma. “Uma menina ao lado disse que era lindo aquele espetáculo. Eu falei: ‘Isso é fogo, vamos embora'”, conta Jéssica. A bebedeira havia sido vencida pela adrenalina do medo da morte. As duas, com habilidade, conseguiram em alguns segundos chegar à saída, vencendo o empurra-empurra com seu conhecimento do local.

A Kiss era uma boate da moda. Mas o sucesso maior era com o público predominantemente adolescente. Daí o apelido ‘Kids’. “Todo mundo falsificava documento para entrar ali. Vou lá desde os 17 anos”, conta um rapaz que pediu para não ter seu nome revelado. Sem opção naquele sábado à noite, Lucas Alves Stefanello, empresário e designer de 24 anos, aceitou o convite de um amigo. Chegaram pouco antes da meia-noite e pegaram uma fila ainda pequena na porta. Como estava dirigindo, decidiu não beber. “Eu estava sóbrio e sei descrever absolutamente tudo o que aconteceu ali dentro.” Lucas estava num dos camarotes da pista de baixo. Viu quando Kiko pediu que os seguranças expulsassem um rapaz alcoolizado que assediava sua mulher, grávida. “Isso aconteceu ainda no primeiro show. No final, quando a boate já estava em chamas e ele saiu, a mulher já não estava ali”, conta. O jovem diz que a superlotação da casa era comum – o que atesta o sucesso do local com o público da cidade. Como estava perto do caminho de saída, foi um dos primeiros a ser barrado pelos seguranças que imaginavam se tratar de um grupo de ‘espertinhos’ que pretendia deixar a casa sem pagar. “O vocalista colocou o braço para cima e o foguinho que ele segurava logo pegou no teto. Veio uma bola de fogo se espalhando rapidamente e eu corri. Estava a uns dez passos da porta e tinha umas cinco ou seis pessoas na minha frente. Tentamos sair, mas os três seguranças não deixaram. Ficamos uns 40 segundos tentando explicar que a casa estava em chamas, mas eles achavam que era briga. Até que uma menina começou a gritar mais, a multidão foi se aglomerando e eles perceberam que era sério.”

Guilherme Carrion Carvalho estava na área VIP ao lado do palco quando o incêndio começou. Ele viu as chamas no teto atrás do vocalista da banda Gurizada Fandangueira. O líder do grupo parou a música, tentou apagar o fogo com uma garrafa d’água e ia tentar com outra. Um segurança levou o extintor, que não funcionou. Um amigo de Guilherme pensou em filmar, mas ele o convenceu a procurar uma saída imediatamente. Alguns de seus amigos saíram na frente e ainda pegaram alguns segundos da contenção dos seguranças. Ele demorou cerca de dois minutos para chegar até a porta. Viu que as pessoas que estavam na pista ao lado não perceberam do que se tratava. Na saída, uma menina caiu na sua frente e ele a carregou para fora. Lá fora, ele viu Kiko lamentando que a boate estava pegando fogo, que estava perdendo o patrimônio – o dono não tinha percebido que já havia mortos no local.

Resgate – O primeiro chamado recebido pelo Corpo de Bombeiros de Santa Maria foi às 3h16, um minuto depois do início do incêndio na boate Kiss. Uma pessoa desesperada relatava que o lugar estava em chamas. Antes de a telefonista checar a informação, outras três ligações, de diferentes números de celular, alertaram para o mesmo fato. O alarme soou no quartel. Às 3h20, 11 bombeiros – sendo cinco alunos em fase final de formação – deixaram a base em direção ao pedido de socorro. Às 3h23, a equipe chegou ao local. Imediatamente, o comandante da ação, sargento Robson Müller, entrou sozinho na boate. Não havia fogo. Só muita fumaça tóxica, com um cheiro ácido, que fazia arder o nariz. O sargento não enxergava dois palmos à frente. Esgueirando-se pelas paredes, chegou a um ponto menos escuro. Aos 44 anos, 25 deles como bombeiro, assustou-se com o que viu. “A área central da boate era um amontoado de 100 corpos. Não tinha gente em pé. Todos estavam no chão, desmaiados ou mortos”. O cenário visto por Müller é resultado do gás venenoso exalado pela queima do poliuretano, presente na espuma barata usada como isolamento acústico. A estimativa é de que oito minutos depois do início do fogo a maioria das mortes já estava consumada. Entre 3h15, momento em que o incêndio começou, e 3h23, quando os bombeiros chegaram, as chamas já tinham cessado e os jovens, tombado. “Pensei: Meu Deus, minha equipe não vai dar conta”.

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O sargento voltou à porta da Kiss, ordenou que sua equipe iniciasse o resgate, solicitou reforço máximo ao quartel e permitiu que quatro jovens os ajudassem. “Eu não deveria deixar aqueles rapazes, que não eram bombeiros, correrem aquele risco. Mas precisava de ajuda. Os civis ficavam na porta, puxando as pessoas que trazíamos de dentro”. Às 3h45, os oito cilindros de oxigênio usados pelos militares se esgotaram. As equipes de reforço, solicitadas vinte minutos antes, não haviam chegado. “Com oito cilindros, é possível ter sucesso em um incêndio com dez vítimas, não em um com mais de 230”. O sargento Müller se viu em um dilema: parar o salvamento e preservar a vida dos socorristas; ou continuar sem o equipamento necessário, mesmo colocando a equipe em risco. “Decidi expor os meus homens. Entramos nos arrastando pelo chão, onde havia mais oxigênio, e vimos algumas pessoas se mexendo lentamente. Aquilo nos encheu de esperança. Mas, ao tentar puxá-las, encontrávamos grande dificuldade, porque muitos corpos estavam por cima”. Às 4h, depois de 15 minutos de um exaustivo trabalho sem os cilindros de oxigênio, o sargento notou que os jovens retirados não tinham mais vida. Deu fim ao resgate, para preservar a equipe. “Em 47 minutos de salvamento, nós tiramos 120 pessoas com sinais vitais. Fomos ao limite”. O reforço chegou minutos depois – tarde demais.

A busca por vida estava encerrada, mas a boate continuava tomada pela fumaça, que não tinha por onde sair. “As seis chaminés instaladas no telhado da Kiss não funcionaram. Isso impediu que o ar tóxico fosse sugado. Ou seja, formou-se uma câmara de gás”, diz o sargento. A comparação é exata. Com o incêndio, a combustão da espuma que revestia o teto liberou o cianeto, gás usado pelos nazistas no holocausto. Os bombeiros tiveram de abrir duas janelas no teto e outra na parede da boate para liberar a fumaça. Essas complexas intervenções acabaram às 6h. Enfim, com os três buracos feitos de forma estratégica, o ar intoxicado se dissipou completamente. Foi iniciada, então, a contagem dos mortos.

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De todo o trauma vivido pelo sargento Müller, um instante o levou à vertigem, em plena operação. “Nós estávamos tirando alguns corpos no bar. Dois deles estavam encostados na porta de um freezer vertical. Ao retirar esses dois, a porta do freezer abriu. Lá dentro, havia o corpo de uma mulher agachada. Meu Deus! No meio do fogo, uma mulher procurou abrigo em um freezer”, conta. “Eu pensava que tinha salvado muitas vidas. Que ilusão. Salvar uma centena não foi o suficiente.” Em alguns pontos da boate, próximos às paredes, até sete corpos estavam sobrepostos, superando um metro de altura. “Parecia que eu via fotos dos campos de concentração nazistas. Mas, ali, as vítimas não foram jogadas umas por cima das outras, sem vida. Elas se pisotearam e se amontoaram, no desespero para fugir.”

(Reportagens de Bela Megale, Kalleo Coura e Laura Diniz)

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