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Camden Town, o bairro onde Amy Winehouse se sentia em casa

Arte de rua, bares e lojas ecléticas atraem turistas ao bairro onde a cantora inglesa viveu
Camiseta estampada com a figura de Amy Winehouse em Camden Town Foto: Eduardo Maia / O Globo
Camiseta estampada com a figura de Amy Winehouse em Camden Town Foto: Eduardo Maia / O Globo

LONDRES - Apenas oito estações de metrô separam o centro aristocrático de Londres de um de seus bairros mais interessantes, justamente por sua total falta de pedigree. Não é sangue azul que corre nas veias de Camden Town, tão longe do Big Ben e tão dentro da alma londrina. Não há guardas em roupa de gala, museus vitorianos ou estátuas equestres de reis imponentes. As ruas são tomadas por artistas plásticos, músicos, estilistas, colecionadores, judeus ortodoxos, mulheres de burca, rastafáris, torcedores de futebol, senhores com corte de cabelo moicano, jovens desfilando com roupas dos avós ou gente simples, dedicada a seus jardins. E por turistas que todos os dias chegam de metrô (ou de barco, pelo Regent's Canal, nos dias mais quentes) em busca da multiplicidade de mercados e lojas, que vendem camisetas do Sex Pistols ao lado de casacos de pele, móveis centenários e reproduções de pinturas de Banksy, o grafiteiro mais conhecido e misterioso do mundo, que já usou as paredes do bairro como tela.

Estar em Camden Town também é apurar os sentidos. Enquanto é dia, sotaques variados saem de dentro das barraquinhas de comida. Clientes são chamados em inglês com sotaque vietnamita ou até em espanhol, como se habla nos subúrbios da Cidade do México. E de monotonia e fome, ninguém morre: come-se frango xadrez, tortilla, pizza de peperoni, falafel, entre tantas outras opções nas barraquinhas. Ou comida indiana ou vegan em conceituados restaurantes locais. O cheiro de cada tempero vem com o som das caixas de som, instaladas em cada canto dos mercados: techno, salsa, blues, Chico Buarque. Quando o sol se põe, há de jazz a hardcore nos pubs e casas de shows. Palcos onde a história da música pop escreveu alguns de seus melhores capítulos. Sem falar nos pubs, instituições do bairro, onde se pode jogar sinuca com Amy Winehouse ou pagar uma cerveja escura e morna para a musa inglesa do soul. Só não a peça para cantar. Porque, em Camden Town, ela está em casa.

Nos mercados, roupas antigas e até comida de astronauta à venda

Uma tarde nos mercados de Camden Town é um programa imperdível até para quem não gosta de fazer compras. São quatro mercados bem diferentes entre si, mas que de tão próximos parecem um só. E complementares. É por causa deles que milhares de turistas visitam diariamente o bairro. O maior movimento é no fim de semana, quando tudo está aberto e as ruas são tomadas também por artistas. Mas quem estiver na cidade numa terça ou quarta-feira, por exemplo, pode chegar sem medo de dar com a cara na porta.

Para chegar até eles, suba a Camden High Street, a rua principal do bairro, ao lado da estação do metrô. A via concentra a maior parte do comércio e, depois do Regent's Canal, passa a se chamar Chalk Farm Road. É neste ponto que ficam os três principais mercados da região.

O mais antigo é o Camden Lock , fundado no começo dos anos 1970 num antigo prédio de tijolos aparentes em frente ao trecho represado do canal. Dentro dele, a arquitetura faz lembrar uma estação de trem do início do século XX, com pé direito alto e três pavimentos repletos de lojinhas de roupas, artesanatos e obras de arte. Seu outro acesso é pelo calçadão do canal. Por ali, chega-se a um pátio nos fundos do prédio principal, com brechós, sebos e até lojas de brinquedos.

Do outro lado do prédio do Camden Lock há uma espécie de largo, com uma profusão de sons, cores e aromas, vindos principalmente das barraquinhas de comida dos mais variados tipos. E cada uma com sua própria trilha sonora, o que, aliás, é uma constante em todos os mercados. Essa praça de alimentação forma um corredor onde se pode parar de barraca em barraca, provando um pouco de cada especialidade: chinesa, tailandesa, vietnamita, mexicana, italiana, afegã, turca, peruana.... Variedade que se espera encontrar em Londres.

Nesse caminho, por baixo da linha férrea (sempre que o trem passa, o mercado parece balançar), há restaurantes convencionais, claro. Um deles é o Gilgamesh, que mistura diversas cozinhas orientais e é muito procurado por vegetarianos. Nesse ponto, sem que o visitante tenha percebido, já deixou o Camden Lock e chegou ao Stables Market , o maior e mais interessante dos mercados do bairro. O complexo funciona num ex-estábulo que servia de hospital para cavalos.

A primeira loja que se vê é a Cyberdog, que tem um robô de mais de três metros ao lado da entrada. Dentro dela, o ambiente parece o de boate: música eletrônica alta, luz negra e letreiros florescentes. Quem fica apenas no primeiro ambiente pensa se tratar de uma loja de acessórios de computador e outras quinquilharias eletrônicas e futuristas, como comida de astronauta.

Mas os dois andares para baixo mostram que a cartela de produtos é muito mais ampla. O primeiro é quase um supermercado para DJs, clubbers e promotores de raves. Roupas coloridas, aparelhagem de discotecagem e curiosidades, como bolsas feitas com disquetes de 3 1/2 polegadas (aqueles quadrados, usados num passado distante em microcomputadores nem tão micros assim). Menores de 18 anos não podem ir mais abaixo, onde está o setor de sex-shop, com forte apelo sadomasoquista. E sempre com música eletrônica ao fundo.

O passado é a próxima parada no Stables Market. O carro-chefe do mercado são os brechós e antiquários, com artesanato e arte contemporânea correndo por fora. Quem gosta de roupas antigas pode encontrar itens raros e, em geral, em boas condições de uso. Nos melhores brechós, é possível encontrar casacos militares da época da Segunda Guerra e camisas de bandas, como The Clash, originais dos anos 1970. Afinal, em Londres toda, quase todos têm um avô que lutou contra Hitler e um tio que pintou o cabelo de azul quando jovem.

Do outro lado do Regent's Canal está o Camden Village Market, com seu agradável ambiente, a céu aberto e de frente para o canal. Em termos de mercadoria, não é muito diferente dos outros. Mas vale uma visita para fazer uma boquinha sentado nos assentos de lambreta transformados em banquinhos de uma mesa para refeições comunitária.

Afastando-se um pouco, pela Camden High Street fica o Camden Market, conhecido também como Buck Street Market. Perto dos outros, é quase um camelódromo, que vende basicamente roupas. Mas o baixo preço o torna uma boa pedida.

Mas nem só de mercados vive o comércio de Camden. Ao longo das Camden High Street e Chalk Farm Road há lojas de roupas, antiquários, estúdios de tatuadores e outros variados serviços. Como a concorrência é grande, muitos estabelecimentos apelam para fachadas um tanto bizarras, com figuras gigantes para atrair a atenção dos clientes.

Uma loja de calçados, por exemplo, colocou um tênis gigante cercado por bonecos de ícones pop, como Jimi Hendrix, Marilyn Monroe, Elvis Presley e o jogador de futebol da Irlanda do Norte George Best. Perto dela, um avião apontado para o chão anuncia que ali se vendem roupas para automobilismo e afins.

Mas um nicho bastante explorado nessa área de Camden é o da moda gótica. Lojas de roupas (com suas fachadas horripilantes, com zumbis, vampiros e aranhas gigantes) se enfileiram, causando duas dúvidas pertinentes a quem visita o bairro pela primeira vez: quem compra roupa desse tipo, e onde vai vestido assim? Deve ser inspiração de uma das nativas mais famosas da região, a escritora Mary Shelley.

A autora de "Frankenstein" não está sozinha na lista de ex-moradores ilustres da região. Charles Dickens, George Orwell e Rimbaud passaram temporadas, mesmo que curtas, naquelas terras, que pertenceram ao Conde de Camden no final do século XVIII, e que se desenvolveram com a abertura do canal, em 1816. Após um início nobre, as ruas foram tomadas por fábricas, que produziram fumaça e decadência. Até que, nos anos 1970, uma juventude prafrentex recolocou Camden Town no mapa de Londres.

Arte polêmica das ruas para as camisetas

Pode um artista sem rosto ser a cara de um bairro? Se o artista for o grafiteiro inglês Banksy e o bairro, Camden, a resposta é sim. Apesar de nascido na cidade de Bristol e de já ter deixado sua marca em diversos pontos de Londres, Nova York e Los Angeles, por exemplo, o artista que mantém sua identidade em segredo pintou nos muros do bairro algumas de suas obras mais famosas.

Seu polêmico trabalho caiu como uma luva para a contestadora Camden. Mesmo que seus grafites - sempre em locais onde isso é terminantemente proibido - sejam apagados pouco tempo depois, sua obra é campeã de vendas nos mercados e lojas de Camden Town.

Por onde se anda, é possível ver camisas estampadas com o famoso desenho de um manifestante arremessando um buquê de flores como se fosse um coquetel molotov, ou quadros reproduzindo o retrato de dois guardas britânicos se beijando na boca. De galerias mais arrumadas, como a Red Art, no Stables Market, a banquinhas no meio da rua.

Banksy, também autor de "Exit through the gift shop", indicado ao Oscar de melhor documentário de 2010, é o mais famoso, mas há outros grafiteiros que pintam os muros do bairro. Mais um motivo para prestar atenção aos detalhes do passeio.

Porque Amy Winehouse diz 'no, no, no'

Depois de 14 horas caminhando por Camden Town e algumas centenas de fotos, eu e minha câmera estávamos sem bateria. Entrei no pub mais despretensioso da Inverness Street, o The Good Mixer, pedi uma Guiness e sentei num sofá. Acompanhava uma partida de sinuca quando, como se fosse a coisa mais normal do mundo, Amy Winehouse chegou.

Quando surgiu a ideia de visitar Camden Town me falaram, em tom de piada: "Vai acabar encontrando a Amy". Para mim, era mesmo uma piada, até a cantora entrar no bar, acompanhada de marido e de dois seguranças. É fato: moradora mais ilustre do bairro, onde nasceu e foi criada, Amy é figurinha fácil nos pubs locais. Claro que topar com ela é uma questão de sorte, mas não é impossível.

Ela é habitué, por exemplo, do World's End , o pub mais famoso da região, bem em frente à estação do metrô. Funcionando quase sem interrupções desde 1776, quando se chamava Mother Red Cape, tem uma área enorme, com dois bares, um mezanino e um pequeno restaurante. Em anexo, um lugar para shows, com agenda quase diária. É uma característica dos pubs de Camden Town: o bairro que viu o nascimento do punk e de bandas como Oasis e Blur conta com uma infinidade de palcos.

Todos estão a pleno vapor aos fins de semana, quando a programação é melhor, com um cardápio musical que vai do jazz ao heavy metal. O que não quer dizer que as noites de segunda a quinta-feira sejam silenciosas. No Jazz Café, por exemplo, há boa música quase todos os dias. Já o Bar Fly, com seu ambiente escuro, e o Dublin Castle, cuja decoração mais parece com a de um cabaré francês do que com a de um pub irlandês, abrem suas portas para novas bandas quase diariamente.

Camden também tem em seus limites duas casas que fazem parte da história recente da música na Inglaterra. Desde os anos 1960, Roundhouse (na Chalk Farm Road) e Koko (na Camden High Street), ambas com capacidade para mais de 1.500 pessoas cada, vêm recebendo alguns dos principais artistas pop do mundo, de Doors e Rolling Stones a Madonna e Red Hot Chili Peppers.

Outro endereço clássico é o Electric Ballroom , lar de artistas do underground londrino há também muitas décadas. A casa fica na altura da Inverness Street, onde há outro endereço de boa música ao vivo, o Solo Bar . A entrada discreta leva ao subsolo, onde um elegante bar recebe músicos de jazz e blues no seu palco intimista.

Caminhando um pouco mais até o final da rua, voltamos ao princípio. O Good Mixer é uma boa opção para quem quer apenas uma cerveja para relaxar. A música vem de uma jukebox. Apresentação ao vivo, só de Amy Winehouse. E, assim mesmo, numa mesa de sinuca.

No Stables Market, a badalação noturna fica por conta do Proud Camden , um misto de galeria de arte, restaurante, bar e casa de shows. Durante o dia, o local é parada obrigatória por sua galeria de fotos, quase sempre com uma exposição ligada ao universo musical. É possível também almoçar ali, já que são servidos menus fechados por £ 18 (em torno de R$ 50).

Mas é à noite que o local faz valer sua fama de um dos locais mais descolados de Londres. Antigas cavalariças foram transformadas em sete pequenas salas, cada uma diferente da outra, algumas até com barra para pole dance. Uma outra virou um bar e no final do corredor há um palco. A agenda de festas e shows é movimentada, mas é possível alugar uma dessas salas para uma reunião entre amigos, uma uma boa opção para quem está em grupo.

Londres bucólica ao longo do Regent's Canal

A maneira mais prática de chegar a Camden Town é de metrô. Há também muitas linhas de ônibus Mas nenhuma delas é mais charmosa que a viagem de barco entre Little Venice e Camden Lock. Por esse trajeto, através do Regent's Canal, o visitante passa por um dos cenários mais bucólicos da região norte de Londres, que engloba o Regent's Park, o parque Primrose Hill e o Zoológico.

A "pequena Veneza" londrina, no começo do canal, fica próxima à estação de metrô de Warwick Avenue. O lugar é um pequeno porto de barquinhos típicos (conhecidos como narrow boats ou canal boats) dos pequenos canais ingleses. Ali é possível pegar uma embarcação rumo à estação dentro do mercado Camden Lock. O sentido contrário também é possível. Cada trecho leva cerca de 50 minutos, com direito guias explicando um pouco da história da região, cheia de palacetes e locais históricos. Uma das principais empresas desse ramo é a London Waterbus .

Dizem que o plano original do arquiteto e urbanista John Nash era que o canal cortasse o Regent's Park, projetado para abrigar algumas das melhores famílias do então império. Mas o plano acabou não sendo concretizado porque os maus modos dos barqueiros, a serviço das indústrias locais, ofenderia os nobres moradores. O canal acabou por contornar o parque e hoje serve apenas como entretenimento. A maioria dos barqueiros faz trajetos mais curtos entre o mercado e o porto e o Zoo de Londres , bem no meio do caminho, e algumas empresas oferecem pacotes com a passagem e a entrada para o parque.

Fundado em 1828, o Zoo é uma das atrações mais populares da cidade, com 750 espécies de animais, desde tigres de Sumatra a insetos raros, passando por girafas, bichos-preguiças e uma infinidade de aves, cujo viveiro é visível do canal. Uma das atrações mais recentes é uma área que reproduz uma floresta tropical, com destaque para as espécies de pequenos macacos.

O Zoológico fica dentro da área do Regent's Park. Para visitá-lo é melhor partir do centro de Camden a pé. São muitas alamedas e jardins bem cuidados, como manda o figurino britânico. É ótimo também para praticar exercícios ou tomar sol em dias de temperaturas mais generosas.

Durante a primavera e o verão, o destaque fica para o Queen Mary's Garden, com uma bela coleção de rosas e outras flores. O lago artificial, criado por John Nash no início do século XIX, ainda reúne muitos peixes e, consequentemente, pássaros, num bonito cenário. Há ainda um jardim de inverno, bem perto da Gloucester Gate, a entrada do parque mais próxima do centro de Camden.

Do outro lado do canal está o Primrose Hill, um pequeno parque, cujo maior atrativo é uma leve colina no centro, talvez o ponto mais alto do bairro (sem contar os prédios, claro), de onde se pode ver com perfeição os principais marcos do skyline londrino: o Big Ben, a Torre de Londres, o Parlamento, a London Eye e alguns dos prédios modernos ao sul do Rio Tâmisa. Reze para que o céu esteja limpo.

Por mais que uma volta de barco seja atraente, não deixe de caminhar pelas bordas do canal. É um dos passeios mais relaxantes que se pode fazer nessa agitada capital mundial, passando por debaixo de pontes, avistando famílias de patos e observando em detalhes os barcos-casa que atracam ao longo de todo o trajeto. Essa tradição inglesa pode ser bem curiosa aos olhos brasileiros. A maioria deles tem detalhes que só quem caminha com calma por ali pode perceber, como pequenos jardins nos tetos. So british , totalmente Camden Town.